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Boletim Informativo Quinzenal
FUNDASP - Fundação São Paulo Mantenedora da PUC-SP e do ASSUNÇÃO.

nº03
03/01/2022

 

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PERGAMINHO

Este texto foi ensejado pelo inesperado e surpreendente ressurgimento do documento abaixo, após duas décadas de existência e muitos anos de percurso por mãos de diferentes fiéis depositários. As duas décadas de existência, os muitos anos de desaparecimento, a sua improvável sobrevivência e ressurgimento, e, sobretudo, o que ele significa, já conferem a ele a condição de documento histórico. O relato abaixo busca apenas contextualizá-lo, e, a rigor, foi composto por várias vozes que vocalizaram várias memórias, de diferentes testemunhas oculares ou contemporâneas, em vários encontros com diferentes formações, num espaço de tempo múltiplo e intermitente. O registro abaixo é o sumo possível e incompleto de tudo isso. .

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Crédito da imagem: BEL MERCÊS.


Houve um tempo, desde sua criação em 1978 até meados da primeira década dos anos 2000, que o curso de Jornalismo da PUC-SP funcionava num reduto exclusivo e muito especial, do lado oposto ao prédio da Reitoria, na rua Monte Alegre, onde hoje há um estacionamento e ainda alguns estúdios e laboratórios, assim como um vestígio das antigas edificações, na presença de um "castelinho", construção original do convento que deu lugar à PUC-SP, e onde funcionava a secretaria da antiga Faculdade COMFIL, hoje FAFICLA, na qual o curso de Jornalismo está alocado.

Como "de tudo fica um pouco" -  nos diz Carlos Drummond de Andrade, no poema "Resíduo" -, lá está até hoje esta edificação, conservada pela Universidade. Havia um pátio, havia uma jabuticabeira neste pátio, salas de aula que davam para ele, e até senhorinhas residentes no entorno que cortavam o caminho por ali, com seus carrinhos de feira, da rua Cardoso de Almeida para a Monte Alegre, pois havia uma passagem aberta e livre entre as duas ruas. Isso muito remotamente, antes que existisse qualquer tipo de barreira nas duas pontas entre a Cardoso e a Monte Alegre.

Havia também, às vezes, moradores de rua que pediam licença e adentravam as classes em plena aula pedindo esmola, e acontecia de alguns ficarem por ali e acabarem não só assíduos frequentadores do pátio, como também "alunos ouvintes" atentos e respeitosos, uma vez que não perturbavam as aulas, embora jamais venhamos a saber como percebiam todo aquele cenário. Alguns se tornavam personagens em ótimos textos de alunos, às vezes comentados pelo saudoso e lendário professor Perseu Abramo. Tudo isto era tão orgânico, tão assimilado pela comunidade de alunos, professores e funcionários que trabalhavam e estudavam ali daquele lado, a rua e a Universidade se misturando num caldo perfeito, que o que hoje é chamado de Extensão talvez estivesse de alguma forma primária acontecendo ali, justamente porque a Universidade e a rua se misturavam com uma naturalidade impensável nos dias de hoje. Havia uma intensidade, uma fricção criativa, uma fome de fazer um jornalismo que fosse instrumento absoluto do avanço da redemocratização ainda em curso e da transformação social radical, que ninguém se importava com a permeabilidade das salas de aula, aulas estas que, não raro, aconteciam também no pátio, debaixo da jabuticabeira, quando o calor era muito intenso dentro das salas. Olhando agora, tudo parece muito precário, mas de precário não tinha nada, nem a exuberante simplicidade. Tudo aquilo era feito de uma substância riquíssima que calava profundamente em todos, que modificava e integrava todos.

Foi neste contexto que, em 2002, um grupo de alunos e alunas do curso fez a ocupação de uma salinha obscura e sem uso, que ficava ao lado do "castelinho". A intenção era conquistar uma sede física para o jornal-laboratório do curso, o Contraponto, (contrapontodigital.pucsp.br) depois premiado nacionalmente em meio a um longo e glorioso percurso, formador de gerações e gerações de jornalistas críticos, engajados e politizados, sob a batuta editorial e política do professor José Arbex, e o respaldo ativo e decisivo de um dos gestores mais importantes que o curso já teve, o professor Hamilton Octávio de Souza. Não só a ocupação da salinha, mas também a própria criação do Contraponto foi um ato voluntarista, embora já fosse uma exigência, não fiscalizada, do MEC. Em tudo que era importante e fazia avançar o curso, havia um elemento de voluntarismo de alunos e professores.

O Contraponto era um curso de Jornalismo por si só, dentro do curso de Jornalismo da PUC-SP. Os contrapontistas formaram, durante anos, uma espécie de "divisão de elite" ética, intelectual, política e de excelência técnica a imantar todo o curso. A melhor tradução de vanguarda. A salinha foi ocupada, tornou-se a sede do Contraponto, e curiosamente, recuperou sua função antiga e esquecida, a de sala da Coordenação do Curso, numa fusão perfeita e visionária de horizontalidade comunitária. Tornou-se o que poderia ser, naquela altura, a mais completa tradução do que é uma comuna. O mais nobre e edificante sentido de comuna, um lugar comum de aprendizado, vida e luta.

Um dia, anos depois, o curso de Jornalismo começou a ser transferido para o prédio novo e a salinha da "Comuna", assim como quase tudo naquele lado, veio abaixo.. Dos escombros, onde se viam cartazes, bandeiras e uma infinidade de registros de campanhas, edições do Contraponto, documentos etc, misturados com entulhos, paus e pedras, deste cenário em ruínas milagrosamente salvou-se uma frágil folha de papel, este documento, que por anos havia ficado exposto no quadro de avisos do lugar, junto aos "fora Bush", aos "viva Che", ao "toda força ao MST", ao "por justiça social" e muitos, muitos outros gritos de bom combate. O fim daquele espaço físico coincidiu com o começo do fim de um certo ciclo do curso de Jornalismo, que conferiu a ele grandeza e uma identidade nacional.

Em 2002, no calor da ocupação, a aluna Bel Mercês, (www.facebook.com/belmerces) como quem finca uma inequívoca bandeira vencedora, escreveu num pedaço de papel, com caneta vermelha, o "auto de ocupação":  "HOJE, 21/05/2002, OCUPAMOS ESTA SALA, SEDE DO CONTRAPONTO". Pronto, estava feito. Ela e todos aqueles jovens nem imaginavam que, há 20 anos, estavam fazendo história.

Como a história não tem fim, e como de tudo fica um pouco, aí está este "bilhete", desenterrado de camadas e camadas de esquecimento, mas vivo o suficiente para testemunhar de onde viemos, o que fizemos, o que sonhamos, nos lembrar do que somos/fomos, nos lembrar do que restou em nós, nos lembrar do que está vivo ou morto em nós, - porque também nos lembramos do que morreu,  ao olhar a cicatriz -, e nos lembrar sobretudo que, daqui a mais vinte anos, nos escombros do que hoje está de pé, haverá algum resíduo de hoje, porque Drummond tem razão: de tudo fica um pouco.