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Boletim Informativo Quinzenal
FUNDASP - Fundação São Paulo Mantenedora da PUC-SP e do UNIFAI.

nº06
15/02/2022

 

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CAPELA NOSSA SENHORA DOS AFLITOS SERÁ FINALMENTE RESTAURADA!

Uma joia do século XVIII, repleta de histórias apagadas, será recuperada e restaurada, para reparar séculos de esquecimento e descaso, manter viva a memória de tempos cruéis e injustos e honrar a vida dos esquecidos.


O Radar FUNDASP preparou um DOSSIÊ sobre este assunto,
que poderá ser acessado na íntegra no endereço:

https://www.fundasp.org.br/publicacoes/radar/arquivos/2022/n06-dossie.html


Capela dos Aflitos, uma epifania, uma cicatriz

É muito difícil encontrar palavras, frases ou narrativas capazes de traduzir o impacto objetivo e subjetivo, ou a experiência, como se prefere hoje, de entrar em contato com a história da Capela Nossa Sra. dos Aflitos, ou simplesmente Capela dos Aflitos. E, sobretudo, ficar na presença destas pessoas intraduzíveis que fazem parte desta longa jornada de luta para manter de pé a Capela e lutar pela sua restauração; ouvir seus relatos de viva voz, naquela concha sagrada, durante horas que parecem minutos, e onde tudo parece ocorrer numa outra dimensão; ver o brilho intenso dos olhos destas pessoas, que faria qualquer um se perguntar: o que as move?

Melhor seria se Gabriel García Marquez estivesse aqui para sobre elas e sobre a Capela escrever um livro, ou mesmo se esta tarefa ficasse nas mãos talentosas de nossa Eliane Brum. @brumelianebrum.

Imagine uma edificação do século XVIII, mais precisamente de 1779, encravada num beco do mesmo nome, Beco dos Aflitos, construída em um cemitério que existiu entre 1775 e 1858, e sobre o qual ergueram-se edificações que asfixiam por todos os lados a Capela que um dia fez parte deste Cemitério? Imagine que tudo que se ergueu sobre este Cemitério ergueu-se sobre os despojos de cerca de 30 mil almas? Almas literalmente penadas, porque sem identificações, sem nenhum tipo de exéquias funerais, e muitas vezes sem sequer uma mortalha?

De testemunha, para contar esta história, milagrosamente - e pela luta incansável de inúmeros ativistas ao longo de dois séculos – restou a Capela dos Aflitos.

Está tudo lá, bem no centro de São Paulo, no bairro da Liberdade, recoberto por camadas e camadas de História, apagamentos, ranger de dentes, resistência e ressurgimentos.

Imagine uma mistura improvável de lanterninhas japonesas com todo tipo de comércio e lojas com suas cores feéricas, com sua profusão de sons, cheiros e degradações, servindo de corredor para um lugar cuja presença material e imaterial vai transportá-lo para dois séculos atrás, um imenso cemitério de pobres, pretos, anônimos e proscritos, um patíbulo servindo a uma forca para execuções regulares de condenados, a luz mortiça de um largo chamado Largo da Forca,(hoje Praça da Liberdade) e um Pelourinho, tudo próximo, fazendo parte do mesmo conjunto.


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Placa instalada pela municipalidade, na fachada da Capela dos Aflitos.


O local do Pelourinho ganhou uma placa ao lado do Metrô Liberdade, ínfima ponta de um iceberg para sempre soterrado sob a vida que pulsa e corre indiferente aos bons fantasmas que teimam em não desaparecer para sempre.

E que estão consubstanciados, em grande parte, na Capela dos Aflitos, lugar perturbadoramente indecifrável, cujo velário corresponde ao exato lugar onde o preto Chaguinhas -, mártir santificado pelo povo, objeto de devoção a quem os devotos dirigem pedidos, dentre os quais muitos são atendidos segundo testemunham os próprios suplicantes -, passou a noite anterior ao seu enforcamento, pena sem crime, em 20 de setembro de 1821.

Ir caminhando pelos cerca de 50 metros de extensão do beco, vendo lá no fundo a fachada quase cenográfica daquela construção -, um campanário e sino que parecem ter sido miniaturizados, a revelar ali a presença de uma igrejinha -, é o tempo de que você precisa para começar a ser transportado para dentro de uma história inenarrável, em que pese a profusão de relatos encontrados na web, muitos eivados de equívocos, como os que se referem à história da Capela e seu mártir, Chaguinhas, como "lenda urbana", linguagem destinada a um certo tipo de turismo urbano comercial.

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: Leila, Emília, Igor, padre Enes, Eliz e José Antônio, presentes no encontro de 29/01/22.


Não importa quais sejam suas crenças: você será capturado por alguma coisa cujo termo mais aproximado seria o de um sentimento de transcendência. Que depois vai se misturar a um conjunto indefinível e variado de impressões e sensações que podem passar pela epifania e chegar à devoção, não necessariamente à devoção religiosa, mas uma devoção de entrega, de se render a uma história tão intensa, tão dolorosa quanto gloriosa e que você saberá que nunca mais poderá se desfazer dela.

E em algum momento você vai se perguntar como este lugar tão pequeno, tão ínfimo, tão pungentemente pobre – o resto, nos termos do filósofo e professor Oswaldo Giacóia Jr. -  e que está ali há quase dois séculos e meio, pode ser um santuário tão grandioso, ter uma presença tão poderosa e inspirar tanta reverência e contrição. E então, você já faz parte da jornada. Ou não. Mas o sentimento do sagrado, difusamente ou claramente, vai impregná-lo.

E agora, em pleno 2022, século XXI, depois de muito tempo e muita luta de heroínas e heróis anônimos, - alguns dos quais este texto irá presentificar -  um grande sonho vai se realizar, a Capela será restaurada.

Uma graça foi concedida, você ouvirá, com a intercessão de Chaguinhas: a Capela, que já é tombada pelo município e pelo Estado de São Paulo, será finalmente restaurada, para não desabar e desaparecer. Essa pequena-grande joia será preservada, e com ela, uma larga fatia soterrada de nossa História. 

À Capela dos Aflitos, tão pequenina, hoje só uma cicatriz, caberá ser a fiel e luminosa depositária de uma história impossível de ser narrada só por uma voz, a voz modesta deste precário relato, mesmo tornado dossiê.

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Cartaz presente na Capela dos Aflitos, com uma das cinco ou seis imagens de Chaguinhas que circulam. Uma das campanhas pelo Sítio Arqueológico do Cemitério dos Aflitos.


botao

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