Texto e Contexto
2022
A agenda de Bobbio e o momento brasileiro
16/10/2022
A temperança se contrapõe à violência. É a virtude que se exige para conter a onipresença atual doânimo dos extremos.
É relevante a ressonância da obra de Bobbio entre nós. Amplamente acessível em português, ocupa espaço próprio na lúcida clarificação da Política e do Direito. Conjuga-se com o papel de Bobbio, que transcende a Itália, de intelectual público voltado para a afirmação da democracia, dos direitos humanos e da paz.
Acaba de ser publicada a edição brasileira de Norberto Bobbio – uma biografia cultural, de Mario Losano, eminente professor emérito italiano de Filosofia e Direito. São características de Losano o admirável escrúpulo da pesquisa e a medida no julgar e apreciar a complexidade das coisas. Foi o que norteou a elaboração desta biografia cultural na qual traçou com precisão cartográfica o mapa de sua abrangente obra e os significativos caminhos de sua vida.
Instigado pelo livro de Losano e pela minha conhecida dedicação a Bobbio, vou elencar alguns dos temas recorrentes de sua agenda que são um pano de fundo relevante para o Brasil nesta antevéspera de segundo turno das eleições presidenciais. Começo pelo fascismo.
Os anos de formação e do início do magistério de Bobbio transcorreram na Itália do fascismo de Mussolini, que ele identificou como um dos paradigmas da era dos extremos do século 20. Foram características dos valores e práticas do regime fascista na análise de Bobbio: a glorificação da violência; a contestação da democracia, do Estado de Direito e da divisão dos Poderes; a afirmação belicosa de um Estado potência no plano internacional; a hiperpersonalização do poder como desdobramento do apreço incontido pelo chefe; o apelo aos ressentidos e desenraizados; a substituição do pensamento pelo primado da ação e do movimento.
A obra de Bobbio é uma contestação às práticas e valores do fascismo e do que representou e representa. Foi nesta linha que afirmou a primazia do governo das leis em contraposição ao governo dos homens.
A forma institucional moderna do governo das leis é o constitucionalismo. Num regime constitucional, governantes e governados atuam sob o império da lei, e o poder dos governantes é regulado por normas jurídicas e deve ser exercido em conformidade com elas. Num Estado de Direito constitucional, a ação política submete-se não apenas aos juízos de eficiência, mas também ao da conformidade com as normas fundamentais da Constituição. A dimensão institucional do constitucionalismo pressupõe a separação dos Poderes e a tutela dos direitos humanos que consagra a vigência da perspectiva dos governados e dos seus direitos políticos e sociais.
Bobbio aprofunda o alcance do governo das leis mediante a formulação das regras do jogo democrático como regras de procedimento para a formação da decisão coletiva. Isso inclui o sufrágio universal em eleições periódicas, a regra de maioria que dela resulta, o respeito aos adversários que podem se tornar maioria, o livre debate das alternativas e a preservação das instituições sob a égide do Estado de Direito.
Bobbio define o governo de democracia, que conta cabeças e não corta cabeças, como aquele que postula visibilidade e transparência do poder, ou seja, o exercício em público do poder comum, pois aquilo que é de interesse de todos deve ser do conhecimento de todos. Daí a contestação ao segredo: ao poder que oculta as coisas nas arcas do Estado e ao poder que se esconde, escondendo por meio da mentira.
Bobbio analisa os riscos da guerra no mundo contemporâneo que se magnificaram com o inédito poder aniquilador das armas nucleares, ampliadas pelo impacto destruidor que a inovação científico-tecnológica confere às armas tidas como convencionais. Explicita que é instável e precária a paz lastreada na balança de uma geopolítica de poder.
Por isso, para Bobbio, a paz não se circunscreve à momentânea ausência de guerra. A paz é um valor e precisa ser construída por um pacifismo ativo. O que anima o pacifismo de Bobbio é um pacifismo de meios e de fins que leva em conta que a violência não é parteira da história, e "está se tornando cada vez mais o seu coveiro".
Bobbio discute a laicidade e o espírito laico como uma regra de comportamento num Estado Democrático não confessional. O espírito laico contrapõe-se a todas as formas de intolerância, exclusivismos e fanatismos, impeditivos da convivência inerente ao pluralismo da sociedade. A laicidade assegura a plena liberdade religiosa no espaço do privado e da sensibilidade dos fiéis, mas postula que no âmbito do espaço público as alternativas e as opções se dão no mundo dos homens e não provêm da palavra de Deus.
Bobbio fez o elogio da mitezza, palavra que foi traduzida em português por serenidade e em espanhol por temperança. É uma virtude do espírito laico que se corporifica numa postura de respeitar as ideias alheias, de empenhar-se em compreender antes de discutir, de discutir antes de condenar e de ter medida no julgar perante a complexidade das coisas. A temperança se contrapõe à violência. É a virtude que se exige para conter a onipresença atual do ânimo dos extremos.
Celso Lafer
Professor Emérito da Faculdade de Direito da USP, foi Ministro das Relações Exteriores (1992 e 2001-2002)
Artigo publicado em "O Estado de S. Paulo", no dia 16 de outubro de 2022
Arquivo
Quem nos dera, nos dera?
Ou quisera apenas nos emprestar?
Mas é que ao povo não se empresta,
o que por natureza já lhe compete guardar.
E quem nos dera, dera o que ao posto coubera?
Ou fugira ao rigor, como quisera?
E com vigor se pôs a desmantelar,
o que se levou décadas a edificar.
A imagem de um país devastado?
Uma pátria armada e desamada,
num novo verde e amarelo a nos envergonhar.
A polarização irracional e desmedida,
completa desempatia, um desirmanar sempar.
No desgoverno de povo perdido,
faltou-nos a liderança, o exemplo a dar.
De sobra, a falta de escrúpulos de quem compete zelar.
A perda perdida de vidas ímpares,
definhadas nos leitos e nas casas, sem ar.
Em vias de alcançar as sete centenas de milhar.
Quem nos dera que a maioria deste povo...
Quisera... Há um quadriênio, tivesse tido
um ato-feito-gesto outro, um passo bem refletido.
E não a vingança que, ao fim, só revida ao ressentido.
E agora, Dora, já não se faz a hora?
Aqui dentro a dor demora.
Lá fora, o vento ainda propaga um remanente ceifar.
Corre e percorre, mundo afora,
como a ida de Paulo, precoce, a nos arrebatar.
O legado de luta e riso é o que nos vigora.
A pílula que não se doura.
A dor duradoura que perdura.
A luta vindoura o que nos anuncia?
Mira-se, ouve-se, e já se tem um prenúncio.
Bom senso bem-vindo seria.
Cuidar da psique, do déficit; os corpos e as almas acalentar,
apurar responsabilidades, trocar o braço do leme,
ritmar o passo, andar para a frente,
mirar na ciência do que se vê e na empatia que se sente.
De um sonho intenso e um raio vívido,
de amor e de esperança o Brasil carece.
Patrícia Neves Franco
A Páscoa é uma daquelas festividades que desafiam a lógica que organiza as relações do mundo. Entre os cristãos, por exemplo, celebrar a ressurreição de Cristo significa que a vida não pode ser contida por nenhuma estrutura de morte. Se as relações presentes no mundo são pautadas por uma lógica em que o grande se alimenta do pequeno, como dizia Pe. Antônio Vieira no Sermão de Santo Antônio aos peixes, na proposta de vida dos seguidores de Jesus, o mundo não pode ser assim. O Evangelho já dizia de não servir a dois senhores, a dois princípios (cf. Mt 6,24). Ou a Vida ou a Morte.
O valor do símbolo está relacionado com a realidade que lhe subjaz. A Páscoa não é diferente: sob o mistério da Cruz, os cristãos contemplam a Revelação de Deus. Na cruz, é-nos revelado tudo o que o cristianismo precisa conhecer para cumprir a vontade divina. No entanto, é muito comum, sobretudo na cultura e piedade popular, a associação do mistério da cruz com dor e sofrimento, manifestos, por exemplo, em filmes como A paixão de Cristo, de Mel Gibson, e nas festas religiosas em honra a Bom Jesus dos Passos. Ambas atribuem fortemente um caráter salvífico à experiência da dor, de modo que muitos terminam por entender que o sofrimento seria necessário à salvação e, por tabela, que seria da vontade de Deus. Nada mais longe do que a cruz simboliza.
Uma experiência comum a todos é de como aspectos da vida ganham mais sentido a cada passo dado rumo à liberdade: uma nota de prova para conclusão de semestre; uma nova fase do trabalho; uma dívida quitada; uma ignorância vencida, entre outras situações. Assim, é coerente afirmar que Deus não quer o sofrimento; a dor não tem força de salvação; salvação não é recompensa de quem sofre. Se forem transformadas em afirmações, tais frases justificariam vidas pela metade, contrariamente ao projeto de Deus.
Na Cruz, o cristianismo vê não apenas que a dor é insuficiente para redimir, como também percebe elementos que podem dar sentido à vida. A Tradição cristã, olhando para a Cruz, aprende a ressignificar as realidades da vida cotidiana, numa busca de ver o mundo da forma como Deus vê. Se no mundo antigo sacrifício acentuava sinais de morte, agora o “sacro ofício” é optar por servir a vida; se antes triunfo consistia em garantir riquezas, agora a glória é lutar para que os mais fracos tenham acesso a elas; se houve um tempo em que poder era subjugar os demais à própria revelia, agora é oferta de vida em favor de todos.
A Páscoa, desta forma, traz em si a força regeneradora capaz de recriar não só a vida do sujeito, mas suas relações e seu mundo. Participar dessa realidade é entrar no Reino de Deus. Se isso for verdadeiro, esta festa não pode ser uma realidade a ser vivida apenas no íntimo de cada um: deve transbordar e manifestar-se num compromisso com a Criação. Cada homem e mulher de boa-vontade ganha alento para construir um mundo no qual não exista predação, em que não seja naturalizada a violência nem a opressão. A Páscoa transcende o indivíduo e não se deixa conter nos limites da vida religiosa. A nossa Universidade é parte desse compromisso, pois vive em função da verdade, que, de acordo com o São João, não é um conceito, mas aquilo que é capaz de libertar (cf. Jo 8, 32). Até isso apreende-se da Cruz!
Embora se saiba que nem todos compartilhem da mesma fé, não poderia ser considerado exagero nutrir o desejo de que todos possam usufruir de seus frutos. Como Páscoa significa “passagem”, que entre o povo da Antiga Aliança seria da escravidão para a liberdade, e para os seguidores de Jesus é a da morte para a vida, que esta festa encontre todos os membros desta Comunidade Acadêmica – professores, funcionários e estudantes – desejosos de uma verdadeira mudança de vida e mentalidade; passar de uma vida predatória para uma vida de serviço, compromissada com as mesmas escolhas que Jesus de Nazaré fez e que se perpetuaram na imitação de seus “gestos e palavras, até que volte outra vez”. Jesus ressuscitou, viva a Vida! Uma feliz Páscoa!
Os católicos iniciaram o tempo da quaresma, preparando-se para a festa da Páscoa, a ser celebrada em meados do próximo mês de abril. De antiga tradição bíblica e cristã, a quaresma lembra os 40 dias de Jesus no deserto, em jejum e oração, preparando-se para o anúncio do Evangelho. Lembra, também, os 40 anos da travessia do deserto, do povo hebreu guiado por Moisés, em busca da terra prometida.
A quaresma iniciou com o chamado forte – "convertei-vos!" –, repercutindo o apelo de Jesus no início da pregação do Evangelho. É um convite incisivo a orientar a vida para Deus e seu reino, o bem supremo da existência humana. Pensando bem, a vida humana inteira neste mundo é marcada por esta busca ansiosa do encontro com Aquele que pode saciar plenamente o coração humano, conforme palavras de Santo Agostinho: "Tu nos fizeste para ti, Senhor, e nosso coração anda inquieto, até que não repousa novamente em ti" (Confissões).
Ao lado desse significado existencial (converter-se para), o chamado à conversão também tem uma dimensão moral (converter-se de) e implica a mudança de atitudes e vícios e práticas erradas, para outras, moralmente corretas e louváveis. A conversão moral nem sempre é fácil e demanda esforço e constância. É bem compreensível que o exercício da virtude requeira motivação mais forte e energias maiores do que a prática do mal. Mas também é certo que a virtude enobrece e traz paz ao coração, enquanto o vício perturba a consciência e avilta o ser humano.
Para favorecer o processo de conversão, a quaresma propõe vários exercícios, como o jejum, a penitência, a oração e o amor ao próximo. As práticas de penitência ajudam a discernir sobre o essencial e indispensável na vida, disciplinam e fortalecem a vontade no combate contra as tendências e inclinações para o mal. Conforme textos da liturgia católica deste período, pela penitência aprendemos a dominar nossos maus desejos, corrigir os vícios, elevar os sentimentos, fortificar-nos na prática do bem. Pela oração assídua e intensa, reconhecemos nossa fragilidade e finitude de criaturas e nos voltamos humildemente para Deus, buscando nele o socorro e o amparo em nosso desalento.
O amor ao próximo é indissociável da busca de Deus, uma vez que não é possível amar a Deus, a quem não se vê, sem amar o próximo, a quem se vê (cf. 1 Jo 4,19-20). Assim, não é de admirar que muitos apelos da quaresma estejam voltados às questões da justiça, da fraternidade e da ajuda aos pobres e necessitados. A Campanha da Fraternidade, promovida pela Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) todos os anos na quaresma, é um exemplo disso: ela aborda sempre questões da convivência social, na qual há necessidade de conversão para uma fraternidade humana mais verdadeira e efetiva.
Essas e outras práticas quaresmais não são exclusivamente católicas ou cristãs, pois também são recorrentes em outras tradições religiosas, como no judaísmo, no islamismo e nas grandes tradições religiosas orientais, embora com motivações e impostações diversas. A questão de fundo, geralmente, é o reconhecimento da contingência humana, de sua insuficiência e finitude. Não nos bastamos a nós mesmos. A busca de superação de males e vícios revela que o farol a orientar a existência humana são a busca do bem e a prática da virtude, e não o contrário. Não existimos para a prática de maldades nem para nos deixar levar para a degradação da humana dignidade. Embora a perfeição não seja deste mundo, não nos resignamos diante do mal que pode nos envolver e não desistimos da prática do bem, ainda que isso nos custe.
Talvez alguém pergunte se o homem do século 21 ainda tem necessidade de fazer penitência, de se converter e de se exercitar na virtude. Parece-me oportuno deixar aberta essa questão, para que o próprio leitor a responda. No entanto, permito-me fazer algumas perguntas, partindo da realidade em que estamos mergulhados. Será que o convívio social e as relações econômicas e políticas estão uma completa maravilha, sem necessidade de mudanças e de superação de injustiças e maldades, incrustadas até na legislação e na cultura que nos envolve? Será que os gestos de desamor ao próximo, de prepotência e violência – os invisíveis e os destacados todos os dias nas manchetes da imprensa e nas mídias sociais – representam o non plus ultra da condição humana e da sua capacidade de viver com dignidade e respeito?
Assistimos, atônitos, a mais uma guerra na Europa, com a invasão da Ucrânia pela Rússia. Precisava a humanidade de mais este espetáculo deprimente, depois de tanta gestão diplomática e após dois anos de pandemia, com tanto sofrimento e luto? E quando haverá solução para as outras tantas guerras acontecendo pelo mundo, das quais nem se fala, uma vez que envolvem populações esquecidas, que pouco ou nada contam para a economia e as vaidades do poder? Quanta tristeza e humilhação para o homem! Enfim, ainda se faz necessário responder se o homem do século 21 também precisa de conversão?
Dom Odilo Pedro Scherer
Cardeal-Arcebispo Metropolitano de São Paulo
Artigo publicado em "O Estado de S. Paulo", no dia 12 de março de 2022
O BOLETIM REAJUSTE DAS MENSALIDADES Novembro 2021 do SEMESP que visa "auxiliar as instituições associadas na formação do preço das mensalidades e, principalmente, no cálculo do índice de reajuste a ser aplicado nas mensalidades em 2022". Esse boletim destaca ainda que: "Importante salientar que não é possível calcular um índice de reajuste único para todo o setor. Além da restrição legal, por caracterizar formação de cartel, a aplicação de um índice único deveria pressupor estruturas idênticas para todas as instituições.
A diversidade e a pluralidade das instituições são características intrínsecas do setor. O porte, a localização, a natureza jurídica, a organização acadêmica e o portfólio de cursos são exemplos de fatores que diferenciam a composição de custos das instituições e inviabilizam a construção de um indicador único.
Com intuito de fornecer parâmetros para auxiliar as instituições no cálculo de reajuste das mensalidades, o SEMESP publica a tabela de referência da maioria dos itens das matrizes de custo das instituições com as projeções das variações inflacionárias para o ano de 2021. Por meio desta tabela, as instituições poderão estimar o impacto da inflação na sua estrutura de custos até o final do ano.
Adicionado ao impacto da inflação sobre os custos, as instituições também devem analisar o comportamento de outras variáveis na composição das mensalidades, como a inadimplência, a evasão, as gratuidades e a expectativa de crescimento. A aplicação das variações inflacionárias dos itens da tabela de referência deve respeitar o peso de cada item calculado em relação ao custo total da matriz de custo de cada instituição."
Encaminhamos também planilha elaborada por esta Controladoria neste boletim SEMESP. Com base neste estudo o reajuste de mensalidade para o ano de 2022 está limitado a 11,69%.
Destacamos que o reajuste das mensalidades ficou em patamares de 9,0%.
Esse reajuste de mensalidade se faz necessário para fazer frente ao dissidio coletivo dos docentes, a necessidade de manutenção do custeio didático-pedagógico, bem como para gastos relacionados a retomada da pandemia, em especial, aqueles ligados a tecnologia da informação e melhoria de infraestrutura.
Além das mais de 1.700 bolsas de estudo filantrópicas, já ofertadas aos discentes, a Instituição abrirá novo edital de bolsas, neste primeiro semestre de 2022, para cerca de 220 bolsas integrais para os(as) alunos(as).
A instituição mantém a oferta de bolsa de estudo filantrópicas em patamares acima do previsto em legislação, uma bolsa para cada cinco alunos pagantes. As bolsas aplicadas representam 20,4% de alunos bolsistas em relação aos alunos pagantes.
Destacamos ainda, que o reajuste de mensalidades foi aprovado pelo Conselho Universitário da PUC-SP, e pela Fundação São Paulo. Por fim, ressaltamos que casos particulares serão analisados pela Secretaria Executiva da Fundação São Paulo, baseada no princípio "nenhum aluno fora da PUC-SP"
São Paulo, 18 de janeiro de 2022.
Há poucos dias, a imprensa divulgou um levantamento, baseado em pesquisa do IBGE, sobre o impacto da pandemia na educação (Estado, 8/2, A12). Um dos dados mais chocantes foi a constatação de que o número de crianças de 6 a 7 anos que não sabem ler nem escrever cresceu 66% nos dois anos da pandemia de covid-19. Como era de esperar, esse déficit de alfabetização incidiu mais pesadamente nas camadas pobres da população, que agora precisam receber uma ajuda pedagógica extraordinária para não levarem esse prejuízo para o resto de sua vida.
Não por mera coincidência, neste ano, a Campanha da Fraternidade, promovida todos os anos no período da quaresma pela Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), tem como tema “fraternidade e educação”. Não é a primeira vez que a educação é abordada nas seis décadas da existência da Campanha da Fraternidade – ela já foi tema, também, em 1982 e 1998. Dispensável é argumentar sobre a relevância da educação para a vida das pessoas e para a comunidade humana. Nem é preciso discorrer sobre as carências históricas da educação no Brasil, não apenas no período da pandemia. Cenas de racismo e de ódio, como as mostradas com frequência pelas mídias, também questionam profundamente o modelo de educação formal e informal proporcionada às pessoas.
A proposta da Campanha da Fraternidade deste ano recebeu uma motivação especial, vinda do papa Francisco, que há tempos clama por um “pacto educativo global”, convidando pessoas, instituições, organizações religiosas e governos a repensarem os rumos da educação, imprimindo um perfil mais humanista e solidário, que leve à transformação de estruturas sociais viciadas e permeie a cultura com valores humanos. Francisco questiona os modelos educativos que não têm a pessoa humana como foco principal, voltados sobretudo para alimentar o sistema de produção e consumo.
A centralidade da pessoa, a fraternidade e a busca da verdade são princípios essenciais que devem nortear a educação. O objetivo básico da educação, em todos os níveis, precisa ser a preparação de pessoas boas, com princípios honestos e sólidos, que saibam conviver no respeito, na justiça, na fraternidade e na solidariedade. O processo educativo precisaria evidenciar mais esta meta simples e básica: preparar pessoas boas e cidadãos bons, capazes de humanizar a convivência e as atividades humanas.
A Campanha da Fraternidade sobre a educação é um chamado à reflexão sobre a qualidade da educação oferecida às pessoas, desde a mais tenra idade, e sobre os fundamentos e as qualidades do ato educativo, que não pode ser reduzido a ações isoladas, mas precisa envolver processos nos quais confluem os esforços de educadores e educandos, família, escola e instituições do Estado e da sociedade. A realidade da educação no Brasil requer uma urgente e profunda avaliação e revisão, para estar realmente a serviço do desenvolvimento integral das pessoas na sua vida pessoal e social.
Um risco a ser evitado é a redução da educação à mera transmissão de conhecimentos, cuja importância não se nega, mas que não esgota o processo educativo. A educação humanizada também vai muito além de um mero treinamento e condicionamento de agentes do sistema de produção e consumo. A boa educação está comprometida com a convivência humana e o próprio ambiente da vida, proporcionando ajuda ao desenvolvimento integral das pessoas para o exercício da sua liberdade e das suas capacidades para interagir de maneira positiva com os demais seres humanos e o mundo. A educação humanizada deve contribuir para a formação de pessoas abertas, integradas e interligadas, capazes de cuidar da natureza e do planeta, nossa “casa comum”, nas palavras do papa Francisco.
“Fala com sabedoria, ensina com amor” – este é o lema da campanha, repercutindo uma passagem do livro dos Provérbios, da Bíblia (cf Pr 31,26). Na educação humanizada, ganha especial destaque a pedagogia da escuta atenta e integral dos educandos, para os capacitar para o discernimento e a fazerem as escolhas a que a vida os desafia. Na educação humanizada deve ser evitada a tentação de orientar os ouvidos dos educandos somente para os sons previamente já selecionados. Não deve ser uma imposição extrínseca de padrões, sem a participação dos educandos. Assim, a educação é um processo, voltado a preparar as pessoas para o exercício da própria liberdade e responsabilidade.
A pandemia de covid-19 nos pegou de surpresa e esvaziou muitos delírios de onipotência da humanidade, obrigando-nos a colocar os pés novamente no duro chão da realidade e a nos conhecermos melhor. Desafiou-nos a repensar estilos de vida, as relações sociais fragmentadas e a organização individualista da sociedade. Sozinhos não nos salvamos! A pandemia ofereceu-nos uma chance para a busca e a descoberta de meios e processos mais adequados, criativos e eficazes para reorientar os rumos da humanidade. A educação tem a grande missão de favorecer um mundo mais fraterno e humano, que colherá justiça e paz no presente e no futuro.
Dom Odilo Pedro Scherer
Cardeal-Arcebispo Metropolitano de São Paulo
Artigo publicado em "O Estado de S. Paulo", no dia 12 de fevereiro de 2022
Algo novo acontece na Igreja Católica da América. De 21 a 28 de novembro passado, realizou-se a 1.ª Assembleia Eclesial da América Latina e do Caribe, na Cidade do México. Preparada durante dois anos pelo Conselho Episcopal Latino-americano (Celam), a assembleia contou com a participação de mais de mil delegados, oriundos de todos os países do continente. Apenas um de cada dez esteve presente no México, e os demais participaram dos trabalhos de maneira remota, em suas casas, mediante plataformas da internet. A abertura e a conclusão do evento ocorreram na basílica de Nossa Senhora de Guadalupe, na Cidade do México.
A assembleia fez a memória dos 14 anos da Conferência Geral do Episcopado da América Latina e do Caribe, realizada em Aparecida (2007), e já foi orientada pela perspectiva da comemoração dos 2 mil anos da morte de Jesus Cristo, em 2033. Quis o Papa Francisco que todos os membros da Igreja estivessem representados nessa assembleia, e não apenas os bispos, como geralmente ocorre numa iniciativa eclesial desta envergadura. De fato, o grupo dos leigos teve a maior representação, com quase metade dos delegados da assembleia.
A situação de cada povo desta parte do mundo repercutiu na assembleia, com suas belezas e riquezas culturais e religiosas, mas também com suas angústias e sofrimentos, que desafiam a presença e a atuação dos cristãos e clamam por um renovado esforço de mudança e renovação. Grande destaque mereceu o empobrecimento constante das populações tradicionalmente já excluídas da vida econômica e social, em decorrência de sistemas econômicos e políticos nada justos e da falta de solidariedade entre os povos. Vítima destes mesmos sistemas também é a natureza, nossa “casa comum” e o ambiente da vida; desnecessário é dizer que as atenções voltaram-se especialmente para a grande Amazônia.
Motivo de preocupação também foi a crise da democracia nos sistemas políticos em nosso continente, a corrupção e a impunidade que continuam sem solução em várias partes, a violência estrutural e cultural e a legitimação do narcotráfico e da violência contra a mulher. Dolorosa é a condição dos migrantes, sobretudo da América Central e de algumas áreas do Caribe para a América do Norte, configurando-se como um verdadeiro êxodo, com sofrimento enorme para as pessoas entregues à própria sorte. A voz angustiada dos povos originários e dos afrodescendentes fez-se ouvir de maneira clara e forte no plenário da assembleia.
Como não poderia deixar de ser, a assembleia também refletiu sobre problemas internos da Igreja, como o clericalismo e os escândalos morais. Observou-se o desempenho ainda tímido dos católicos na vida social e pública, muitas vezes voltados sobretudo para dentro de seus próprios grupos. Foi pedida maior participação dos jovens e das mulheres nas comunidades e na vida da Igreja. Conforme o tema da assembleia eclesial, os cristãos são chamados a serem discípulos missionários em saída, para levar aos diversos espaços e ambientes do convívio social o bom fermento do Evangelho, colaborando com a construção de um mundo bom para todos.
Um dos objetivos da assembleia eclesial continental era avaliar o caminho feito após a 5.ª Conferência Geral do Episcopado do continente, realizada em maio de 2007, em Aparecida. Naquele evento, o Papa Francisco, ainda em vestes de cardeal Mario Bergoglio e arcebispo de Buenos Aires, desempenhou o papel importante de coordenador da comissão de redação do documento final, no qual se incentivam as igrejas locais a passarem de uma pastoral de mera conservação a uma grande renovação missionária. Iniciativas nesse sentido foram tomadas um pouco por toda parte, mas ainda será necessário ampliá-las.
Muitos elementos de esperança também foram apontados, como o envolvimento amplo das comunidades da Igreja no socorro às vítimas da pandemia, do tráfico de drogas e de seres humanos, na acolhida generosa de tantos caídos ao longo das ruas e praças de nossas metrópoles, no esforço em superar a pobreza e na defesa do ambiente, na promoção da família e do respeito à vida. Crescem os grupos de fé e política, onde os cristãos procuram confrontar sua fé com a participação na vida pública.
A Igreja Católica, enquanto instituição, não busca o poder político, mas encoraja seus membros, enquanto cidadãos, a participarem ativamente da vida política de suas comunidades. A assembleia eclesial aproximou mais os católicos presentes neste vasto continente e deixou a percepção mais clara de que, apesar das muitas diferenças, todos têm muito em comum e podem compartilhar sua bagagem com os povos de onde estão inseridos.
Os cristãos não formam uma sociedade à parte: são membros das comunidades locais, cidadãos e atores sociais e culturais. E o Evangelho de Cristo que levam no coração lhes dá luzes e inspirações para lutarem pela superação das mazelas que afligem as pessoas e edificarem a sociedade no bem.
Dom Odilo Pedro Scherer
Cardeal-Arcebispo Metropolitano de São Paulo
Artigo publicado em "O Estado de S. Paulo", no dia 11 de dezembro de 2021
O problema das mudanças climáticas, posto em debate na Conferência de Glasgow. O que está em jogo é o futuro da vida em nosso planeta azul. Órgãos de governo, empresas, cientistas, pesquisadores e especialistas no tema debateram e compartilharam preocupações e ideias para estabelecer metas e determinar medidas concretas para frear a degradação das condições de vida na Terra.
Também a Igreja Católica compartilha essa preocupação e participa do esforço para cuidar do ambiente da vida. Não é de hoje que ela ensina o respeito à natureza, que não é vista apenas como algo a ser desfrutado para o desenvolvimento humano: ela é obra de Deus Criador e manifestação de sua providência para com o ser humano e todas as criaturas. Cabe ao homem cuidar e administrar este “jardim”, em benefício de todos.
Embora isso já estivesse presente no ensinamento cristão tradicional, a palavra mais explícita da Igreja sobre as questões ambientais é mais recente, como também acontece no âmbito geral da cultura. Contudo, lembro-me bem de uma chamada do padre de minha comunidade de origem, no Paraná, nos anos 1950, advertindo contra o desmatamento indiscriminado e a erosão das terras: “A terra está ferida e a água vermelha dos córregos e rios é seu sangue que escorre”, dizia ele.
O papa Bento XVI, na encíclica Caritas in veritate (2009), ao tratar do desenvolvimento humano integral, recordou que a natureza nos precede, tendo-nos sido dada por Deus como precioso ambiente da vida. Ela nos fala do Criador e do seu amor pela humanidade. A natureza está à disposição do homem, mas não para qualquer intervenção e uso. Nela, o Criador imprimiu ordenamentos intrínsecos, que o homem deve conhecer e respeitar (cf. n.º 48). O homem pode servir-se responsavelmente da natureza para viver, mas precisa respeitar os equilíbrios intrínsecos da mesma natureza.
No mesmo documento, o papa Ratzinger tratou das implicações éticas e morais da conduta humana em relação à natureza. A questão não pode ser abordada apenas do ponto de vista técnico e econômico, pois também está associada aos deveres que nascem da relação do homem com o ambiente e com as demais pessoas. Essa relação envolve a nossa responsabilidade para com a humanidade inteira, sem esquecer os pobres e as gerações futuras. Sem esse discernimento, a natureza acaba sendo um tabu intocável ou, ao contrário, uma reserva da qual o homem vai se apossando até o exaurimento. Nem uma nem outra dessas atitudes corresponde à visão cristã sobre a natureza.
Em 2015, o Papa Francisco publicou a encíclica Laudato sì – sobre o cuidado da casa comum, dedicada inteiramente à ecologia integral, com alguns conceitos novos e incisivos. Nas questões ambientais, tudo está interligado: o ambiente da vida, a pessoa humana e os demais seres, as questões econômicas, a justiça social e a paz. Não se pode tratar de uma delas sem levar em conta as demais dimensões deste conjunto de relações de uma ecologia integral. Também é bem ilustrativa a imagem da casa comum, usada pelo papa na encíclica: nosso planeta é a casa comum da inteira família humana. Descuidar ou pôr em risco a segurança desta casa é uma ameaça para a existência da própria humanidade. E o cuidado desta casa é uma responsabilidade de todos os seus habitantes. Ninguém está dispensado de fazer a sua parte.
Francisco propõe uma verdadeira “conversão ecológica”, que leve a mudanças de atitudes, padrões de vida, de modelos de desenvolvimento econômico e cultural e de formas de fazer política. Os padrões insustentáveis de produção e consumo, fora de controle, da sociedade global, levam à degradação das relações humanas e do planeta. Somente uma nova consciência ambiental e solidária será capaz de evitar o pior e de cuidar bem da Terra, preservar os recursos naturais e garantir o desenvolvimento humano sustentável, com justiça social, paz e esperança na nossa casa comum.
No dia 31 de outubro passado, Francisco conclamou os líderes mundiais a ouvirem “o grito da Terra e dos pobres”, pedindo que a Conferência de Glasgow forneça respostas eficazes para as graves questões climáticas globais e esperança concreta para as gerações futuras. Na mensagem enviada ao presidente da COP-26, Alok Sharma, o papa escreveu que é hora de mostrar se realmente existe vontade política para destinar, com honestidade, responsabilidade e coragem, mais recursos para mitigar os efeitos negativos das mudanças climáticas e para ajudar as populações mais pobres e vulneráveis, que são as que mais sofrem com os efeitos dessas mudanças.
Na sua intervenção na Conferência de Glasgow, o cardeal Pietro Parolin, secretário de Estado da Santa Sé, insistiu: os Acordos de Paris podem parecer ambiciosos, mas são inadiáveis. E desafiou os países mais capazes e ricos a liderarem uma finança e uma economia descarbonizadas.
Trata-se de uma mudança de época e de um desafio civilizatório, que requer o esforço de todos. Também dos cidadãos comuns.
Dom Odilo Pedro Scherer
Cardeal-Arcebispo Metropolitano de São Paulo
Artigo publicado em "O Estado de S. Paulo", no dia 13 de novembro de 2021
A legalização do aborto no Brasil solucionaria, de uma vez para sempre, esta questão, de modo que ninguém mais deveria ter nada a dizer contra tal dispositivo legal? O aborto é uma questão aberta e nunca resolvida, mesmo nos países que o tornaram legal. Não é a legalização que torna bom um ato.
A lei deve proteger e promover o que é bom. O aborto é coisa boa e deveria ser promovido como um direito humano? A questão poderia ser vista a partir de diversos ângulos: o da mulher gestante, o dos costumes da sociedade, o das políticas de governo e, não nos esqueçamos, do lado do feto, ou da criança a ser abortada, que é a parte mais interessada. Há argumentos para todos os modos de ver. Quais deles devem contar mais?
Com frequência, argumenta-se a favor do aborto e se esquece de olhar – ou se faz questão de não ver – o lado do abortado. De fato, é ele o maior interessado, porque está em jogo a sua vida, sem ter ele culpa e sem poder se defender. Procura-se justificar o injustificável, afirmando que é um montinho de células, que ainda não tem vida humana, que não é um ser humano "viável" (o que é isso?). É certo que o início da vida humana envolve uma discussão filosófica e científica infindável. Da ciência também? Será que a ciência tem dúvidas de que o feto, desde que se iniciou a sua formação, está vivo, dotado de vida humana, e não de qualquer forma de vida ainda indefinível?
A mulher gestante merece toda consideração e atenção, e isso é dever dos adultos e dos poderes públicos. Vale argumentar que ela é dona de seu corpo e faz o que quer? O filho que ela gera não é parte do seu corpo, embora dependa inteiramente do corpo da mãe. Este filho, embora ainda esteja em gestação, é um outro ser humano e merece respeito e proteção, não apenas da mãe e do pai, mas também da sociedade. O direito de decidir sobre a vida dos outros não parece um argumento bom, neste caso. A ciência e a Medicina cercam-se de conselhos de ética em pesquisa para discernir sobre intervenções extraordinárias no corpo de uma pessoa. Abortar um filho em formação, fazendo-o perder a sua vida, não poderia ser considerado um ato corriqueiro, que não interessa a mais ninguém, a não ser à própria mulher gestante.
Mas quem fala é homem e padre e, portanto, não pode estar falando sobre isso porque o Estado é laico e a religião não deve se meter neste assunto... Quantas vezes lemos e ouvimos esse disparate! Mas vamos lá. Até agora, o padre não falou em religião, nem suas reflexões foram de base religiosa. E, mesmo que fossem, seja-me permitido lembrar que o Estado laico reconhece a cidadania e assegura a liberdade de opinião também aos religiosos, ainda que se manifestem a partir de suas convicções religiosas. Ou não é assim? A laicidade do Estado, acaso, significa imposição de um pensamento único e oficial?
A questão do aborto, acima de tudo, é humana e envolve o modo como interpretamos o ser humano, sua vida e convivência. Daí decorrem questões do mais alto significado ético – válidas não apenas para os religiosos, mas para todos os humanos. É o caso de perguntar se a honestidade e a desaprovação do roubo e da injustiça contra o próximo valem somente para as pessoas religiosas. E o respeito à dignidade da pessoa humana e seus direitos, bem como a execração da violência voluntária contra o próximo seriam princípios válidos apenas para as pessoas religiosas? Certo que não, porque, do contrário, deveríamos concluir que as pessoas sem fé e sem religião estão liberadas para a prática de toda sorte de violência contra os direitos humanos.
E seria diferente em relação ao aborto? Somente pessoas religiosas seriam contrárias a ele, posicionando-se com firmeza pelo respeito à vida humana, mesmo ainda não nascida?
Com certeza, a luta contra o aborto procurado não é só dos religiosos. O argumento da laicidade do Estado, invocado com frequência para calar quem é contrário ao aborto, é falacioso e não respeita o princípio constitucional da liberdade de convicção e de livre manifestação do pensamento.
Ninguém espere que, um dia, a Igreja Católica se posicionará de maneira favorável ao aborto. Ela estará do lado dos vencedores ou dos perdedores neste debate? Perdedores, acima de tudo, são os bebês abortados e suas mães. E a Igreja Católica está do lado deles e delas.
A História cobrará o seu preço pelas nossas decisões, e os que hoje acusam a Igreja Católica por sua posição contrária ao aborto poderão ser os primeiros a culpá-la, no futuro, quando se concluir que a promoção generalizada do aborto foi um grave equívoco e um grande mal para a humanidade. E perguntarão: onde estava a Igreja? Por que não fez nada?
Anotem aí e nunca se esqueçam: a Igreja não aprova o aborto. Mesmo se alguns ditos "católicos" fazem campanha aberta em favor desta prática.
CARDEAL-ARCEBISPO DE SÃO PAULO
Dom Odilo Pedro Scherer
Cardeal-Arcebispo Metropolitano de São Paulo
Artigo publicado em "O Estado de S. Paulo", no dia 09 de outubro de 2021
No dia 14 de setembro comemora-se o centenário do cardeal Dom Paulo Evaristo Arns, 5.º arcebispo de São Paulo. Uma missa solene, na catedral metropolitana, abrirá este ano centenário, com muitos eventos já previstos. O lema, que consta no brasão episcopal de Dom Paulo – "de esperança em esperança" –, merece uma reflexão especial. Baseado na palavra de Deus, o lema é uma escolha pessoal do bispo e indica uma inspiração fundamental para sua vida e ação.
Dom Paulo escolheu esse lema quando foi nomeado bispo, em 1966. Foi imediatamente após o Concílio Vaticano II (1962-1965), cujas diretrizes trouxeram grande esperança e a promessa de uma nova primavera para a Igreja. Fazia-se necessária a renovação na cultura eclesiástica, ainda muito condicionada pelas circunstâncias vividas pela Igreja no século anterior. O anticlericalismo e as lutas antirreligiosas enfrentadas no século 19 haviam culminado com a perda dos Estados Pontifícios, enquanto se realizava o Concílio Vaticano I (1870). Na primeira metade do século 20, alastraram-se ideologias materialistas, que acabaram mergulhando a humanidade nas duas terríveis guerras mundiais e também levaram a dolorosas perseguições religiosas.
O magistério da Igreja havia feito severas críticas e desaprovações ao modernismo e ao racionalismo, avessos à dimensão religiosa da vida humana e social. E condenou com firmeza as ideologias materialistas, não apenas pelo seu cerceamento à liberdade religiosa, mas também por causa da violação sistemática de outros direitos humanos fundamentais. Superados os dramas da 2.ª Guerra Mundial, a humanidade queria paz e os povos ditos "do Terceiro Mundo" aspiravam à independência e a condições de vida dignas. Houve um esforço internacional para tecer novas relações entre os povos. A Igreja também passou a rever suas relações com o mundo.
O papa João XXIII convocou o Concílio com o propósito de deixar entrar ares novos na Igreja, fazendo-a passar de uma postura fechada e defensiva para uma atitude mais acolhedora e dialogante em relação à cultura, à ciência, à política e às religiões. Não é que ela tivesse abdicado de suas convicções, mas se dispunha a encontrar e ouvir mais, para perceber as razões das outras partes, que não eram, necessariamente, contrárias às suas. Propunha-se ela a somar com todos aqueles que buscassem sinceramente o bem da humanidade, ainda que as convicções fossem diferentes das suas. O início da Constituição Pastoral Gaudium et Spes, sobre a Igreja no mundo contemporâneo, expressou bem esta nova atitude da Igreja: "As alegrias e as esperanças, as tristezas e as angústias dos homens de hoje são também as alegrias e as esperanças, as tristezas e as angústias dos discípulos de Cristo" (GS 1).
Foi neste tempo novo, marcado por otimismo e esperança, que Dom Paulo foi consagrado bispo auxiliar de São Paulo, para atuar ao lado do cardeal Agnelo Rossi, então arcebispo metropolitano. Seu lema é inspirado na Carta aos Hebreus, no Novo Testamento da Bíblia, onde o autor exorta a comunidade cristã a perseverar na fé, sem esmorecer, "pois é fiel aquele que fez a promessa" (cf Hb 10,22-25). E exorta a superar o desânimo e a purificar a consciência das más intenções, incentivando ao amor fraterno.
Na fé católica, a esperança é uma das três virtudes basilares, junto com a fé e a caridade. Elas devem ser a marca característica do cristão. A esperança humana é importante, levando a uma atitude positiva diante da vida, desencadeando energias aptas para superar dificuldades e alcançar objetivos. A esperança leva a ter metas e capacita a buscar, com dedicação e paciência, a realização delas.
A esperança cristã nos projeta para além daquilo que, humanamente, seríamos capazes de alcançar. Sua base é a fidelidade de Deus, que promete e é "fiador" da nossa esperança (cf Hb 6,13). O objeto maior da esperança cristã são as promessas divinas, como a misericórdia, o perdão, a vida e a felicidade eterna. Esses bens, porém, não estão desvinculados das justas esperanças para esta vida: ao contrário, tornam-se fonte de dinamismo e paciente busca dos bens que expressam a dignidade, o valor e a beleza da vida neste mundo.
O lema de Dom Paulo mostrou-se cada vez mais inspirador com o passar dos anos. Em 1970, com apenas quatro anos de episcopado, o Papa Paulo VI o nomeou arcebispo, conferindo-lhe o pastoreio de toda a metrópole paulistana. Na mesma época, São Paulo e o Brasil enfrentaram anos difíceis, durante os quais o arcebispo indicou caminhos de esperança e superação. Diante das situações aviltantes para a dignidade humana, Dom Paulo empenhou-se na realização de pequenas e grandes esperanças das comunidades da periferia urbana e do povo empobrecido. Movido pela mesma esperança, que não desilude (cf Rm 5,5), ele também encorajou muitos outros a se empenharem na normalização da vida democrática no Brasil. O Brasil segue precisando desta "teimosa esperança" ainda hoje.
CARDEAL-ARCEBISPO DE SÃO PAULO
Dom Odilo Pedro Scherer
Cardeal-Arcebispo Metropolitano de São Paulo
Artigo publicado em "O Estado de S. Paulo", no dia 11 de setembro de 2021
Comemorar significa, literalmente, trazer à memória juntos, lembrar juntos. Em 14 de setembro de 2021 estaremos comemorando o centenário do cardeal dom Paulo Evaristo Arns, quinto arcebispo metropolitano de São Paulo.
Nascido em 1921, em Forquilhinha (SC), dom Paulo fez seus estudos preparatórios para a vida religiosa nos seminários da Ordem Franciscana dos Frades Menores, sobretudo em Petrópolis (RJ), e foi ordenado sacerdote em 30 de novembro de 1945. Em seguida, fez o doutorado em Letras na Universidade de Sorbonne, em Paris, com uma tese sobre "a arte do livro em São Jerônimo", tornando-se especialista em literatura cristã antiga, ou patrística.
De volta ao Brasil, foi professor de Filosofia e Teologia em Petrópolis, até ser eleito bispo auxiliar da Arquidiocese de São Paulo, em 2 de maio de 1966, pelo papa Paulo VI. Trabalhou ao lado do cardeal Agnelo Rossi, arcebispo da época, até que, em 1970, Rossi foi chamado a Roma para assumir a condução da Congregação para a Evangelização dos Povos e acompanhar as frentes missionárias da Igreja Católica, sobretudo na África e na Ásia. Dom Paulo tornou-se, então, arcebispo de São Paulo, em 22 de outubro de 1970. Pouco tempo depois, em 5 de março de 1973, foi nomeado membro do Colégio Cardinalício pelo mesmo papa Paulo VI, com quem o cardeal Arns teve sempre grande proximidade e estreita sintonia.
Como arcebispo, dom Paulo procurou renovar a vida da Igreja e dinamizar o trabalho pastoral na arquidiocese, atendendo às circunstâncias e necessidades da cidade de São Paulo, que crescia vertiginosamente e carecia de atenção especial às imensas periferias. Arns procurou traduzir em novas práticas organizativas e pastorais as orientações do Concílio Vaticano II no que se refere à participação do povo na vida e na missão da Igreja. Dedicou atenção especial aos pobres e desvalidos, estimulando o surgimento de numerosas obras voltadas para a promoção da caridade e da dignidade humana.
Sua atuação pastoral em São Paulo se deu em pleno regime militar, quando as liberdades democráticas, o respeito à dignidade humana e aos direitos fundamentais da pessoa foram desrespeitados de forma preocupante. Dom Paulo foi voz firme e respeitada na denúncia desses males e na defesa da dignidade da pessoa e de seus direitos fundamentais. Sua atuação se somou à de muitos que clamavam pelo retorno à normalidade democrática no Brasil.
Não deve ficar em segundo plano a figura de dom Paulo como bispo e pastor dedicado à Igreja. Ele amava seu rebanho e tinha alegria em estar com o povo. Promoveu a evangelização e a organização pastoral, a formação do clero e dos religiosos, incentivou o protagonismo dos leigos para ocuparem com coragem seu lugar na Igreja e na sociedade. Dom Paulo queria a liturgia celebrada com esmero e dignidade, a palavra de Deus anunciada com dedicação e fervor e que o Evangelho de Cristo fosse força e transformação para uma sociedade melhor.
Além da sua palavra fácil e calorosa, dom Paulo escreveu numerosos livros e publicou frequentes artigos e entrevistas. Sua atuação em favor dos direitos humanos e das liberdades democráticas rendeu-lhe prêmios e reconhecimento nacionais e internacionais.
Tendo permanecido por quase 28 anos à frente da Arquidiocese de São Paulo, o cardeal Arns marcou-a profundamente com seu carisma pessoal e suas diretrizes pastorais. Foi um profeta da esperança, conforme o seu lema episcopal, EX spe in spem – de esperança em esperança. Ele nunca renunciou ao sonho de ver um Brasil melhor e um mundo melhor.
Em 15 de abril de 1998, tendo já superando a idade canônica da renúncia ao seu encargo, tornou-se arcebispo emérito, retirando-se da cena pública. Viveu ainda longamente, vindo a falecer serenamente em 2016. Seu corpo repousa na cripta da catedral metropolitana.
Dom Paulo Evaristo Arns é um ilustre personagem que honra a Igreja Católica. Mas também é uma personalidade pública que teve protagonismo singular no seu tempo. Ele agora pertence à História. Na iminência da celebração de seu centenário, estes brevíssimos traços de sua biografia e da trajetória de sua vida têm o propósito de convidar para fazermos juntos a sua memória, daquilo que fez e significou para São Paulo e o Brasil. Muitas iniciativas poderão ser promovidas para lembrar dom Paulo e valorizar o seu legado.
A Igreja de São Paulo recordará o cardeal Arns no ano do seu centenário dando graças a Deus por sua vida e ação e para destacar novamente a herança espiritual que ele aqui deixou. Uma comissão da Arquidiocese de São Paulo está organizando a agenda de eventos e iniciativas para comemorar a efeméride ao longo de todo o ano. A abertura oficial será feita com uma solene celebração eucarística na Catedral da Sé no próximo dia 14 de setembro, às 10 horas, com a presença de representantes da Igreja, autoridades públicas, de outras instituições religiosas, sociais e culturais.
É preciso recordar dom Paulo porque ele ainda tem muito a dizer ao nosso tempo.
CARDEAL-ARCEBISPO DE SÃO PAULO
Dom Odilo Pedro Scherer
Cardeal-Arcebispo Metropolitano de São Paulo
Artigo publicado em "O Estado de S. Paulo", no dia 14 de agosto de 2021
No próximo dia 25 de julho será comemorado pela primeira vez o Dia dos Avós e dos Idosos, instituído pelo Papa Francisco em 31 de maio deste ano. Não por acaso, essa comemoração é perto da festa de São Joaquim e Sant'Ana, pais de Maria e avós de Jesus. Eles são venerados na tradição católica popular como padroeiro dos avós e dos idosos.
A mensagem dirigida pelo Papa Francisco aos avós e idosos parte do contexto da pandemia de covid-19 – que deixou muitas pessoas idosas no desalento e em dura solidão – e os conforta com as palavras de Jesus: "Eu estou contigo todos os dias" (cf. Mt 28, 20). Francisco dirige-se com essas mesmas palavras aos avós e idosos que tantas vezes experimentam a solidão e até mesmo o abandono. Essa condição está sendo particularmente dolorosa para muitos idosos neste tempo de pandemia, quando as pessoas de mais idade são obrigadas a aceitar um distanciamento físico e social drástico para evitar o contágio do novo coronavírus e com a doença.
Incluindo-se também entre os idosos, o papa repete-lhes familiarmente: coragem! Deus não os deixa nunca no abandono! "Muitíssimos de nós adoeceram e muitos partiram, viram apagar-se a vida do seu cônjuge ou dos próprios entes queridos, e tantos – demasiados – viram-se forçados à solidão, isolados por um tempo muito longo". Durante esse tempo, porém, os idosos podem estar certos de que Deus lhes envia "anjos" para os confortar e consolar: anjos que podem ter o rosto de um filho ou neto que os visita, de um amigo de longa data que lhes envia uma mensagem, ou do vizinho da porta ao lado, de um profissional da saúde, de um cuidador... "Oxalá cada avô, cada idoso, cada avó, cada idosa – especialmente quem dentre vós está mais sozinho – receba a visita de um anjo! ".
De maneira pedagógica e sutil, o papa também convida cada um a ser esse anjo para as pessoas idosas, recordando a todos o dever de cuidar dos próprios pais e outras pessoas idosas ou abandonadas a uma amarga solidão. O papa também convida os idosos a aprofundarem a vivência de sua fé, acolhendo os sinais de sua proximidade, lembrando-lhes que a visita e a proximidade de Deus também se manifestam nas boas palavras que lhes são dirigidas e nos cuidados que lhes são dispensados de tantas maneiras.
Acolhendo as limitações próprias da idade, os idosos podem encontrar serenidade e amadurecer ainda mais a sabedoria aprendida com o passar dos anos: "Cada dia leiamos uma página do Evangelho, rezemos com os salmos, leiamos os profetas! Ficaremos comovidos com a fidelidade do Senhor".
Mais de uma vez Francisco se referiu às pessoas idosas em seus pronunciamentos, advertindo que elas não devem ser vistas a partir de cálculos puramente econômicos e na lógica da sociedade de competição, produção e consumo, segundo a qual poderiam ser considerados inúteis e descartáveis. Os próprios idosos devem ser os primeiros a não se resignar a uma condição de inutilidade e sem mais nada para fazer. Eles ainda têm missões importantes na vida e contribuições a dar à humanidade. "A nossa vocação é salvaguardar as raízes, transmitir a fé aos jovens e cuidar dos pequeninos. Não vos esqueçais disto! ".
De maneira especial, nos momentos de crise e grandes dificuldades as pessoas idosas têm uma renovada missão. Francisco convida-as a não desanimarem se as energias se vão exaurindo, ou lhes pareça não haver mais razão para pensarem em projetos novos na vida; eles também não se devem entregar quando as preocupações com os próprios familiares já são tantas e o fardo da idade parece demasiado pesado.
Oxalá o longo período da pandemia, que já deixou um saldo imenso de sofrimento e vidas perdidas, não tenha sido inútil, mas ajude a valorizar mais as pessoas e sua vida e a viver com mais solidariedade e atenção recíproca. "Ninguém se salva sozinho. Somos devedores uns dos outros. Todos somos irmãos (cf. Papa Francisco, Encíclica Fratelli Tutti, 35).
Na mensagem aos avós e idosos aparece o tema do diálogo entre as gerações. A população mundial está envelhecendo bastante rapidamente e nenhuma sociedade se pode dar ao luxo de desprezar os idosos e sua importante contribuição para o bem comum. O futuro do mundo está na aliança entre os jovens e os idosos e no diálogo harmonioso entre as gerações. Jovens podem sempre aprender com os idosos e lutar para tornarem realidade os seus sonhos de justiça, paz e solidariedade.
Por fim, o papa convida os idosos a aprofundarem sua experiência de Deus, que nunca fica velho e segue alimentando a esperança. Os idosos podem ser os intercessores pelo mundo e pelas jovens gerações. No mar tempestuoso que atravessamos, a oração dos anciãos indica a serena certeza de um porto seguro para todos.
É estranho que se veja a velhice, mais e mais, como uma doença e se valorize pouco a imensa contribuição que as pessoas idosas ainda podem oferecer para a vida social. Nesse contexto, as palavras de Francisco têm o efeito de um raio de luz na penumbra que envolve o ocaso da vida.
CARDEAL-ARCEBISPO DE SÃO PAULO
Dom Odilo Pedro Scherer
Cardeal-Arcebispo Metropolitano de São Paulo
Artigo publicado em "O Estado de S. Paulo", no dia 10 de julho de 2021
No dia 31 de maio deste ano, transcorreu o 14.º aniversário do encerramento da 5.ª Conferência Geral do Episcopado da América Latina e do Caribe, conhecida como Conferência de Aparecida. O evento foi aberto pelo papa Bento XVI no dia 13 de maio de 2007 e marcou a vida da Igreja Católica no continente. As Conferências Gerais do Episcopado são convocadas pelo papa e têm como objetivos principais avaliar a vida e ação da Igreja e definir diretrizes para o futuro próximo. Participam delas representantes dos bispos de todos os países do continente.
Ao todo, foram celebradas cinco Conferências Gerais na América Latina, sempre em cidades diferentes: Rio de Janeiro (1954), Medellín (Colômbia, 1968), Puebla (México, 1979), Santo Domingo (República Dominicana, 1992) e Aparecida (2007). Cada uma delas produziu um documento, que se tornou referência para a vida e a ação da Igreja no seu momento histórico.
A Conferência de Aparecida teve o efeito principal de suscitar um novo processo missionário. Consequência não prevista, mas nada indiferente, foi também a eleição do cardeal Jorge Mário Bergoglio, arcebispo de Buenos Aires, como sucessor de Bento XVI à frente da Igreja Católica, em 2013.
Bergoglio havia desempenhado papel relevante na Conferência de Aparecida como chefe da comissão de redação do documento final. Seu conhecimento privilegiado das questões trabalhadas em Aparecida contribuiu, certamente, para a redação do seu primeiro documento pastoral importante, uma vez eleito papa: a Exortação Apostólica Evangelii Gaudium (2013). Nesse texto, Francisco estende para a Igreja inteira muitos temas e intuições da Conferência de Aparecida. Expressões encontradas com frequência em pronunciamentos do papa, como "Igreja em saída", "atenção às periferias", "conversão pastoral e missionária", bem como a preocupação com a Amazônia e as questões ambientais, de modo geral, estão presentes no documento final da Conferência de Aparecida.
Considerando que, desde a realização dessa conferência já se passam mais de 14 anos, o Conselho Episcopal Latino-Americano (Celam) sugeriu recentemente ao papa a convocação de uma nova Conferência Geral do Episcopado. Francisco, porém, considerou que as intuições e diretrizes do Documento de Aparecida ainda permanecem válidas e têm muito a oferecer no presente. Em vez disso, ele pediu que o Celam realizasse uma Conferência Eclesial da Igreja no Continente para avaliar o caminho percorrido depois de Aparecida, apontar as lacunas ainda persistentes na aplicação de suas orientações e discernir sobre as novas realidades e os desafios postos à vida e à missão da Igreja no Continente.
A diferença entre uma Conferência do Episcopado e a Conferência Eclesial está, sobretudo, no fato de a primeira ter como membros e participantes apenas os bispos. Já na segunda participam representantes de todos os segmentos da comunidade da Igreja: cristãos leigos e leigas, consagrados na vida religiosa e membros do clero.
Um evento dessa natureza, com a participação de representantes tão diversificados do corpo eclesial, é um fato novo na Igreja Católica. A identidade e a competência de semelhante reunião ainda estão sendo discutidas e definidas de maneira mais precisa e serão traduzidas num novo documento, antes do início da Conferência Eclesial, cuja realização foi marcada para os dias 21 a 28 de novembro de 2021, na Cidade do México. A organização da reunião está a cargo do Celam e envolve todas as comunidades católicas da América Latina e do Caribe.
Enquanto isso, conforme manifesto desejo do papa, a preparação da Conferência Eclesial segue uma dinâmica sinodal, mediante consultas e sugestões em vários níveis, estendidas aos membros de cada comunidade católica do continente. Essa metodologia na preparação da conferência tem o objetivo de proporcionar uma verdadeira experiência sinodal ao povo católico, chamado a interagir, refletir e se manifestar com liberdade sobre as várias questões em pauta.
Não se trata de mera questão de método, mas de valorizar algo inerente à própria realidade da Igreja. Ela é um povo com muitas capacidades e dons, em que cada um contribui com sua parte para o bem de todos. São Paulo já comparava a Igreja a um corpo onde Cristo é a cabeça e os cristãos são os membros. Cada membro é importante, no exercício de sua função, para a vitalidade do corpo inteiro.
E não será a única ocasião oferecida aos católicos para fazerem uma experiência sinodal. A próxima assembleia-geral ordinária do Sínodo dos Bispos, marcada por Francisco para outubro de 2023, tratará do tema "Igreja sinodal – comunhão, participação e missão". A ideia da sinodalidade já está presente, de alguma forma, no Concílio Vaticano II e faz parte da renovação da Igreja buscada pelo Papa Francisco. Ela se expressa na participação corresponsável de todos os seus membros na vida e missão da mesma Igreja. Cada um a seu modo.
CARDEAL-ARCEBISPO DE SÃO PAULO
Dom Odilo Pedro Scherer
Cardeal-Arcebispo Metropolitano de São Paulo
Artigo publicado em "O Estado de S. Paulo", no dia 12 de junho de 2021
No dia 26 de setembro de 2015 o Papa Francisco alertava para as várias formas de tirania moderna, que procuram suprimir a liberdade religiosa, tentam reduzi-la a uma subcultura sem direito a voz na esfera pública, ou usam a religião como pretexto para o ódio e a brutalidade. E conclamava os seguidores das várias religiões a unirem suas vozes no clamor por paz, tolerância e respeito à dignidade e aos direitos dos outros.
Infelizmente, desde então, os ataques à liberdade religiosa não diminuíram, até pioraram em vários países. Em abril passado, a Fundação Pontifícia "Ajuda à Igreja que Sofre" publicou pela 15.ª vez o Relatório sobre a Liberdade Religiosa no Mundo. Fruto de ampla pesquisa, o relatório é publicado a cada dois anos em diversos idiomas, incluído o português (cf. https://www.acn.org.br/relatorio-liberdade-religiosa). Seria desejável que, em tempos de acesso cada vez maior à educação, informação e intercâmbio entre os povos, a tolerância e o respeito à liberdade melhorassem em todo o mundo. Infelizmente, porém, o relatório mostra o contrário.
Convicções e práticas religiosas são cerceadas em numerosos países e a repressão oficial ou tolerada à liberdade religiosa ainda afeta mais da metade dos habitantes do mundo. De 196 países, 62 enfrentam violações muito graves da liberdade religiosa e a população desses países soma quase 5,2 bilhões de pessoas. Alguns desses países estão entre os mais populosos do mundo, como China, Índia, Paquistão, Bangladesh e Nigéria. As situações mais graves referem-se às ações de grupos jihadistas transnacionais, empenhados numa perseguição seletiva e sistemática a todos aqueles, tanto muçulmanos como cristãos, que não aceitam sua ideologia islamista extrema. Nos últimos dois anos esses grupos consolidaram sua presença na África Subsaariana.
O relatório classifica as áreas de discriminação segundo a gravidade do fenômeno. Na área vermelha, com perseguição aberta ou velada, situam-se 26 países, somando 3,9 bilhões de pessoas, pouco mais da metade (51%) da população mundial. A perseguição não diz respeito apenas a um grupo religioso específico. Essa área inclui 12 países africanos e dois asiáticos: China e Mianmar. Nestes dois estão em curso investigações sobre um possível genocídio. Nos 36 países da área laranja, com 1,24 bilhão de pessoas, ocorrem vários tipos de discriminação. Desde o relatório anterior, houve ligeira melhora em nove países, mas em 20 outros houve um agravamento da situação.
Um terceiro grupo está situado em áreas sob observação, incluindo países onde existiram fatores novos e preocupantes, com potencial deterioração em relação à liberdade religiosa. Em todas as áreas citadas houve crimes de ódio por motivos religiosos, como ataques por preconceitos contra pessoas e bens religiosos. Mesmo em países não classificados nos três grupos mais problemáticos, não é raro acontecerem fatos de discriminação religiosa, sobretudo em alguns países da África e da Ásia. Mas não faltam registros de intolerância e discriminação religiosa também em países de outros continentes, até mesmo no Brasil.
Uma resolução aprovada pela Assembleia-Geral da ONU em 28 de maio de 2019 reconheceu a existência e a gravidade do problema e estabeleceu que o 22 de agosto seja comemorado todos os anos pelos países-membros como o Dia Internacional em Homenagem às Vítimas de Atos de Violência Baseada na Religião ou Crença. O objetivo da resolução é lembrar a todos que a violência baseada na religião não deve ser tolerada e deve haver um esforço dos países para superar a discriminação e a perseguição religiosa. O Brasil está entre os signatários da iniciativa.
A Constituição brasileira de 1988 reconhece e protege a liberdade religiosa nos artigos 5.º e 19. E a Lei n. º 7.716, de 1989, tipifica como crime a discriminação de pessoas por motivos religiosos. Mesmo assim, atualmente os casos de discriminação e intolerância religiosa estão em aumento em nosso país. Religiões e cultos de origem africana são os mais visados, mas não faltam manifestações de intolerância contra cristãos católicos e cristãos em geral.
A intolerância refere-se, sobretudo, ao desrespeito a lugares de culto, objetos de devoção e crenças religiosas. Estudos mostram que os boletins de ocorrência com denúncias de crimes de intolerância religiosa no Estado de São Paulo aumentaram cerca de 171% no período das eleições presidenciais de 2018 em relação aos mesmos meses do ano anterior. No mesmo período, no Estado do Rio de Janeiro as denúncias por intolerância religiosa mais que dobraram. O fenômeno também existe nos demais Estados, mas nem sempre se tem dados suficientes sobre o problema, talvez por falta de registro dos fatos.
O relatório deixa claro que a liberdade religiosa é violada e reprimida onde as liberdades democráticas também o são. Isso deveria levar a refletir. A liberdade religiosa é um bem precioso, que precisa ser preservado para uma convivência democrática e pacífica.
CARDEAL-ARCEBISPO DE SÃO PAULO
Dom Odilo Pedro Scherer
Cardeal-Arcebispo Metropolitano de São Paulo
Artigo publicado em "O Estado de S. Paulo", no dia 08 de maio de 2021
Que palavra de esperança ainda posso dizer, no quadro desolador de notícias ruins a cada dia? Quando os doentes não precisarão mais ser acomodados precariamente nos corredores dos hospitais? Quando a lista diária dos falecidos vai diminuir? Quando haverá vacina para todos? Conseguiremos unir esforços para combater a pandemia de maneira eficaz?
Os cristãos celebraram nesta semana a festa da Páscoa (4/4), a maior solenidade litúrgica da Igreja, e anunciam: Jesus Cristo, "homem justo, que fez somente o bem", foi condenado à morte e executado numa cruz, mas ressuscitou e se manifestou vivo aos seus discípulos. Sua morte teve um efeito devastador nos discípulos, que haviam acreditado nele e em suas palavras.
Dois deles eram originários de Emaús, distante cerca de 11 quilômetros de Jerusalém. Terminadas as festividades da Páscoa judaica, período em que Jesus foi crucificado, retornavam para Emaús, tristes e desorientados, conversando sobre o que se passara com Jesus. Haviam posto suas esperanças nele e agora se sentiam frustrados, não lhes restando mais nada senão voltar para casa e repensar seus projetos (cf Lc 24 13-35).
Enquanto compartilhavam seus sentimentos, um desconhecido juntou-se a eles. Na estrada da vida, sempre é bom ter mais alguém para ouvir e partilhar histórias. Percebendo a tristeza deles, esse novo companheiro perguntou-lhes sobre o assunto da conversa e por que motivo estavam tão tristes. Eles estranharam a pergunta: como assim? Quem poderia ser esse peregrino desinformado, que vinha de Jerusalém, como eles, e não sabia o que havia acontecido por lá nos últimos dias? E lhe relataram sobre Jesus, "profeta poderoso em obras e palavras diante de Deus e de todo povo", que fora acusado diante das autoridades, condenado à morte e crucificado. Eles haviam projetado nele suas esperanças, mas agora tudo acabara. Era como se o caminho se interrompesse abruptamente.
O novo companheiro, que ainda não se identificara, ouviu-os longamente; em seguida explicou-lhes as Escrituras e o que nelas fazia referência ao Cristo de Deus. Os dois haviam até esquecido o que o próprio Jesus lhes anunciara sobre os sofrimentos que devia enfrentar. Enquanto eles o ouviam, seu coração palpitava mais forte. Fazia-lhes bem ouvir alguém, que os tirava do torpor, ajudando-os a recuperar o chão debaixo dos pés. Gostaram do companheiro e o convidaram a pernoitar com eles, pois haviam chegado a Emaús e já anoitecia. Certamente desejavam prolongar a conversa mais um pouco. Sempre faz bem ter alguém que nos escute e encoraje quando estamos no fundo do poço!
Enquanto estavam à mesa para a ceia, o convidado se fez anfitrião. Ele mesmo tomou o pão e o repartiu entre eles, que se surpreenderam. Era um gesto que conheciam bem e lembrava o que Jesus havia feito poucos dias antes, na última ceia com seus apóstolos. Então seus olhos se abriram e reconheceram que o próprio Jesus havia caminhado com eles. Ele, porém, já havia desaparecido de diante deles, do mesmo modo que aparecera em seu caminho. Bem que haviam percebido que seu coração batia mais forte quando ele, durante o caminho, lhes explicava as Escrituras!
No mesmo instante, voltaram para Jerusalém, esquecidos do cansaço e dos riscos da noite. Em Jerusalém encontraram outros discípulos reunidos e alvoroçados, que lhes contaram que Jesus estava vivo e os encontrara durante o dia. Então os dois também relataram aos demais sobre o seu encontro surpreendente com Jesus. Ele estava vivo, a alegria e a esperança voltaram aos seus corações!
Não me perguntem se algum cronista fez a verificação histórica e documentou os fatos. O relato sobre os discípulos de Emaús é apresentado pelo evangelista São Lucas a partir de uma experiência pessoal e única de encontro com Jesus ressuscitado. Os dois, que antes estavam frustrados, desanimados e sem horizonte pela frente, reencontraram forças para o caminho e um sentido novo para viver e dedicar sua vida ao Mestre. Daí por diante eles testemunharam sobre o que Jesus fez e ensinou, até o martírio.
E isso tem algo que ver com a pandemia? Vamos retomar: o roteiro é bem conhecido e aconselhado nas relações humanas sempre que alguém está desalentado. Os dois de Emaús andavam tristes e desanimados. Alguém se aproximou, caminhou com eles, ofereceu seu tempo, escutou desabafos e lamentos e disse palavras de discernimento, que levantaram o ânimo dos dois. Então eles abriram seu coração à generosidade e partilharam teto e pão com o companheiro, ainda desconhecido. E tiveram a surpresa: ninguém menos que o próprio Jesus estava com eles! E reencontraram o sentido da vida, seus corações se encheram novamente de coragem e alegria.
Mesmo se alguém não crê que Deus se insere na dinâmica das relações humanas, faça a experiência: abra o coração, acolha generosamente um irmão aflito. E quem foi duramente golpeado pela pandemia faça a mesma coisa. Partilhe suas dores e angústias e verá que a vida ganha novo sentido.
CARDEAL-ARCEBISPO DE SÃO PAULO
Dom Odilo Pedro Scherer
Cardeal-Arcebispo Metropolitano de São Paulo
Artigo publicado em "O Estado de S. Paulo", no dia 10 de abril de 2021
O Papa Francisco acaba de fazer uma visita histórica ao Iraque, berço de antigas civilizações e tradições religiosas e culturais relacionadas com a origem das três religiões monoteístas: judaísmo, cristianismo e islamismo. Lugares como Mesopotâmia, Babilônia, Ur dos Caldeus e Nínive são mencionados nos relatos bíblicos e foram palco de momentos épicos da história do povo hebreu.
A região do atual Iraque foi banhada frequentemente com o sangue derramado por guerras, perseguições e repressões violentas. Também a nossa geração é testemunha de mais um longo período de conflitos absurdos, com imensos sofrimentos suportados por aquele povo. Não raro os conflitos envolveram motivações religiosas e de discriminação étnica e cultural, mas quase sempre estiveram em jogo a disputa de grupos rivais pelo poder e a supremacia. Também as razões geopolíticas e econômicas, como o interesse pelo petróleo e seus derivados, tiveram peso.
O cristianismo expandiu-se e floresceu bem cedo na Mesopotâmia, possivelmente ainda na era apostólica. Com o surgimento do islamismo, a presença cristã foi drasticamente reduzida ao longo dos séculos. Minorias cristãs, no entanto, mantiveram-se no meio de uma imensa maioria muçulmana. Desde a Guerra do Golfo Pérsico, nos anos 1980, e, sobretudo, com a guerra dos Estados Unidos contra Saddam Hussein, os cristãos pagaram um preço muito alto, por terem sido considerados filo-ocidentais, e ficaram reduzidos mais ainda.
O papa São João Paulo II se opôs energicamente à guerra contra o Iraque, chamando ao diálogo, sem ser ouvido. Recentemente, as minorias cristãs sofreram um novo duríssimo golpe, infligido pelo Isis, o grupo chamado Estado Islâmico, que pretendia islamizar à força os cristãos. Os mártires cristãos foram numerosos, igrejas destruídas, bens expropriados e uma insegurança social sufocante para os cristãos, reduzidos a cerca de 500 mil pessoas, que somente conseguem permanecer lá com a ajuda dos cristãos do mundo inteiro. Há poucas décadas eram dez vezes mais.
Esse foi o contexto da visita histórica de Francisco, que desejou muito ir àquele país para dialogar, confortar e levar esperança. Não houve multidões oceânicas para o acolherem, até porque também lá a pandemia de covid-19 está espalhada. Além dos líderes católicos e de diversos outros grupos cristãos, Francisco encontrou-se com as mais altas autoridades islâmicas locais e do Estado. Havia preocupação quanto à segurança do papa, que também se dirigiu a Mossul, no norte do país, cidade duramente atingida pelos combates contra o Estado Islâmico. Francisco, porém, não hesitou nem por um instante em encontrar aquela população, para lhe levar sua palavra de conforto e esperança.
A visita foi orientada pela busca do diálogo e foi isso o que papa fez o tempo todo nos seus encontros com as autoridades públicas, os religiosos muçulmanos e com líderes das comunidades católicas e de outras Igrejas cristãs do País. Em seus discursos, ele insistiu em diversos momentos sobre a necessidade de ouvir o outro com atenção, estender a mão, colaborar, construir pontes, em vez de levantar muros. Nas lacerações vividas por aquele povo, o diálogo pressupõe desarmar os espíritos, superar medos e mágoas, restabelecer laços de confiança e acreditar na boa vontade do outro. Sem isso é praticamente impossível dialogar.
O diálogo corresponde à natureza do ser humano, que não é completo e fechado em si mesmo, mas aberto ao outro, em quem busca e encontra a sua complementaridade. Escreveu o papa São João Paulo II que o diálogo é etapa obrigatória no caminho da realização humana, tanto do indivíduo como de cada comunidade – encíclica Ut unum sint (Para que sejam um), 1995, n. º 28). Diálogo não é o mesmo que confrontação, na qual o objetivo é que haja um vencedor. O diálogo exige reciprocidade e renúncia à vontade de dominar o outro. É preciso passar do antagonismo e de conflito para um terreno comum, onde uma e outra parte se reconhecem como companheiros de caminho.
No diálogo, cada uma das partes deve pressupor a sinceridade da outra parte, para se estabelecer uma base de confiança recíproca. Dessa maneira, o diálogo respeitoso e franco torna-se partilha de dons e bens, que beneficia e enriquece ambas as partes que dialogam. Ao contrário, o fechamento ao diálogo é empobrecedor e reduz os horizontes da convivência humana, abrindo espaço para o cultivo de ressentimentos e indiferenças.
O diálogo verdadeiro tornou-se um bem escasso, mas precioso, em tempos de polarização ideológica, e não apenas no Iraque ou em países com conflitos armados. Nossa cultura brasileira, geralmente aberta ao diálogo e à convivência acolhedora e pacífica, parece ter sido contagiada por um vírus perigoso, que torna difícil o diálogo sereno e produtivo. O fechamento ao diálogo e o acirramento de preconceitos e discriminações podem predispor a conflitos e atos violentos. Aonde isso pode nos levar? Dialogar é preciso!
CARDEAL-ARCEBISPO DE SÃO PAULO
Dom Odilo Pedro Scherer
Cardeal-Arcebispo Metropolitano de São Paulo
Artigo publicado em "O Estado de S. Paulo", no dia 13 de março de 2021
Em sua mensagem para a festa do ano-novo, comemorado pela Igreja Católica como Dia Mundial da Paz, o papa Francisco refletiu sobre um tema recorrente em seus pronunciamentos: a cultura do cuidado das pessoas, do ambiente e da vida. A reflexão foi motivada pelas dificuldades vividas ao longo do ano que passou, com a pandemia de covid-19. E persistem conflitos armados e tensões em várias partes do mundo por causa das desigualdades sociais e econômicas, da crise migratória e climática.
A crise sanitária vivida em 2020 revelou grandes e comoventes movimentos de solidariedade e dedicação ao próximo de muitos profissionais e voluntários. Mas preocupam as formas de insensibilidade, discriminação e fechamento diante da dor alheia e das ações que, em vez de construir pontes, levantam muros de ódio, xenofobia e morte. O papa fala da importância da edificação de uma sociedade "alicerçada em relações de fraternidade".
A fraternidade, como base das relações humanas, foi tema da recente encíclica de Francisco, Fratelli tutti (Todos sois irmãos). A cultura do cuidado é decorrência e manifestação da fraternidade, levando a construir relações de interesse efetivo pelo bem do próximo e a superar a cultura da indiferença e do descarte, conceitos esses também frequentes nos pronunciamentos do pontífice.
Na sua mensagem sobre a cultura do cuidado como caminho para a paz, Francisco parte de conceitos teológicos e chega a conclusões para a vida cultural, social e econômica. Deus Criador revela-se ao homem como sábio cuidador do universo e de todos os seres, convidando também o ser humano a participar do zelo e cuidado que tem pela obra criada. Em vez de "lobo devorador do próximo" ("homo hominis lupo", J. Locke), o homem é chamado a ser cuidador do seu semelhante. Por isso, toda forma de injustiça, desprezo e violência contra o próximo é desaprovada pelo Criador. Jesus Cristo deu o exemplo de atenção misericordiosa pelo próximo, colocando-se junto de quem é vítima de qualquer forma de violência, doando sua vida inteiramente pela humanidade.
Dos seus ensinamentos aprendemos que o amor a Deus nunca pode ser separado do amor ao próximo. A prática das obras de misericórdia espiritual e corporal passou ao núcleo central da vida cristã, traduzindo-se em inúmeras iniciativas de atenção às pessoas e socorro em suas mais diversas necessidades e em seus sofrimentos. O crer corretamente em Deus está vinculado estreitamente ao viver ativamente o amor ao próximo, fazendo próprios as suas carências e seus sofrimentos. A figura do bom samaritano, do Evangelho (cf Lc 10,25-37) é paradigmática para a cultura do cuidado, inerente à própria essência do cristianismo.
Desse núcleo central decorrem também os princípios do ensino social da Igreja, voltados para orientar a práxis humana coerente com a fé em Deus e a cultura do cuidado. Primeiros dentre eles são os da dignidade da pessoa e dos direitos próprios de cada ser humano. A realidade da pessoa "exige sempre a relação, e não o individualismo, afirma a inclusão, e não a exclusão, a dignidade singular inviolável, e não a exploração", afirma o papa (n.º 6). Francisco recorda um princípio ético do filósofo alemão Emanuel Kant para destacar a dignidade humana: "Toda pessoa humana é sempre um fim em si mesma e jamais um mero instrumento utilitário para alcançar outros fins". Da dignidade de cada pessoa também decorrem os direitos inalienáveis de cada ser humano e os deveres recíprocos do respeito e cuidado de uns pelos outros, especialmente pelos membros mais fracos e vulneráveis da comunidade humana. A pessoa nunca há de ser um mero dado estatístico, ou um meio a usar enquanto há ganho para em seguida descartar.
Da dignidade humana decorre também a noção de bem comum, segundo a qual nossas ações devem sempre levar em conta suas consequências para o próximo e para toda a família humana. Nosso agir deve ser solidário, jamais individualista, fechado e insensível. Por consequência, negócios lucrativos feitos à custa do sofrimento e exploração do próximo, ou que tenham como consequência a doença ou a morte das pessoas, são absolutamente injustos e desumanos.
A cultura do cuidado também inclui o cuidado da natureza e do conjunto do ambiente, como Francisco expôs na sua encíclica Laudato Sì (2015). O mau uso e o descaso em relação à "casa comum" levam a consequências que vão muito além da mera deterioração ou destruição do ambiente: são também fonte de sofrimentos e conflitos, cujo preço maior é pago pelos membros mais vulneráveis da comunidade humana. "Paz, justiça e salvaguarda da criação são três questões completamente ligadas", recorda o papa (n.º 6).
A mensagem para o Dia Mundial da Paz termina com um apelo para que a cultura do cuidado sirva de bússola no caminho da edificação da paz. Esta é uma construção comum de muitos artesãos da paz, membros de comunidades onde se cuida uns dos outros. Não haverá verdadeira paz sem a cultura do cuidado.
CARDEAL-ARCEBISPO DE SÃO PAULO
Dom Odilo Pedro Scherer
Cardeal-Arcebispo Metropolitano de São Paulo
Artigo publicado em "O Estado de S. Paulo", no dia 09 de janeiro de 2021
Notícias recentes vindas da província de Cabo Delgado, no norte de Moçambique, dão conta de um drama vivido pela população local, acuada por ataques terroristas. Aldeias e casas são queimadas, plantações, devastadas e muitos sofrem violência e morte. Aterrorizadas, as pessoas fogem para as cidades, na esperança de encontrar acolhida e segurança.
A cidade de Pemba, com cerca de 250 mil habitantes, recebeu em poucos meses mais 200 mil prófugos, acolhidos e abrigados só Deus sabe como. Não há como atender adequadamente a população de uma cidade que, em poucos meses, dobra de número!
A ajuda, na maior parte dos casos, é prestada de maneira espontânea por famílias e organizações da sociedade civil, que partilham o que têm e providenciam, ainda que de maneira precária, o básico do básico: abrigo e alimento. É fácil imaginar os riscos para a saúde pública e a segurança.
A covid-19 também chegou lá. No entanto, conforme observação de um missionário local, essa é apenas uma preocupação secundária para o povo desalentado.
Haveria motivos minimamente aceitáveis para submeter a população indefesa e pobre a tamanhos sofrimentos? E os olhos das organizações internacionais, em geral, ainda não se voltaram para esse drama do povo moçambicano.
Não é a única situação do mundo em que as populações sofrem com a insegurança provocada por conflitos internos, ou por interesses externos inescrupulosos, convivendo diariamente com a precariedade de recursos para dar conta do essencial para sobreviver. Na mesma África existem diversas outras situações semelhantes.
Mas não se pode esquecer que também na Síria e em outras áreas do Oriente Médio populações inteiras se deslocaram para escapar da brutalidade da guerra. O Líbano abriga há várias décadas um grande número de deslocados de países vizinhos, a ponto de também ter sido envolvido em conflitos externos.
Há igualmente muitos deslocados nas Américas Central e do Sul, que se deslocam para áreas capazes de alimentar sua esperança de um futuro mais tranquilo. As situações de pobreza e violência foram agravadas com a pandemia de covid-19, que levou muitos a perderem sua fonte de renda.
Esse drama também é vivido bem perto de nós, em São Paulo, pela população que vive em situação de rua. Aos que já se encontravam nessa condição há mais tempo se somaram muitos outros, que alongam as filas em busca de ajuda, sobretudo o alimento diário, nas obras e iniciativas assistenciais. E também os que perderam a capacidade de custear o aluguel de sua moradia, vindos também de outras regiões.
De repente, a cidade se dá conta da população invisível, que vive precariamente em cortiços e alojamentos improvisados, sem trabalho, sem renda nem segurança e também sem políticas para lhes oferecerem alternativas e esperança de vida digna.
O papa Francisco abordou recentemente o drama, "muitas vezes invisível, dos deslocados internos", num discurso para o corpo diplomático acreditado junto à Santa Sé. E voltou ao mesmo tema na sua mensagem para o Dia Mundial do Migrante e do Refugiado, a ser celebrado em setembro. A atenção do pontífice volta-se especialmente para os "deslocados internos" nos diversos países, que vivem muitas experiências de precariedade, abandono, marginalização e rejeição, por causa da covid-19.
Em sua mensagem para o Dia Mundial do Migrante e do Refugiado de 2018, Francisco já havia recomendado uma atenção especial a essa população, mediante quatro ações: acolher, proteger, promover e integrar. Agora, referindo-se aos "deslocados", ele recomenda seis atitudes: conhecer, para compreender; aproximar-se, para servir; reconciliar-se, para escutar; crescer, para partilhar; envolver-se, para promover; colaborar, para construir. Essas atitudes sugerem a superação da insensibilidade e da cultura da indiferença diante da dor alheia e o envolvimento pessoal de cada pessoa com o drama vivido pelo outro.
Se é verdade que cada cidadão deve fazer a sua parte para ajudar o próximo que sofre, nem por isso o papa deixa de apelar às autoridades e aos responsáveis pelos governos para que façam o possível para aliviar o sofrimento dessas populações invisíveis, que agora aparecem cada vez mais nas praças e calçadas de nossas cidades. E fala da necessidade de um renovado esforço para a cooperação internacional, a solidariedade global e o compromisso local, que não exclua ninguém. São palavras mais do que oportunas para este tempo, quando muitos especulam sobre as mudanças que a pandemia de covid-19 poderá trazer para a nossa vida pessoal e social e também para a vida política e econômica.
Todos os dias se reportam números e mais números de contagiados e falecidos por causa do novo coronavírus. Mais uma vez, o papa adverte que não se trata números, mas de pessoas, com rosto e histórias pessoais. As estatísticas não devem levar a esquecer o drama de cada pessoa, mas mover para atitudes que renovem os rumos de nossa História comum.
CARDEAL-ARCEBISPO DE SÃO PAULO
Dom Odilo Pedro Scherer
Cardeal-Arcebispo Metropolitano de São Paulo
Artigo publicado em "O Estado de S. Paulo", no dia 18 de setembro de 2020
Diversas entidades de expressiva credibilidade firmaram e divulgaram recentemente um "pacto pela vida e pelo Brasil". Entre as entidades signatárias figuram a Conferência Nacional dos Brasil (CNBB) e a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB). O pacto versa sobre dez questões relevantes e tem o estilo de um apelo a toda a sociedade brasileira, especialmente aos governantes e políticos, aos agentes sanitários, econômicos e financeiros.
Mas também é dirigido a toda a população e às lideranças da sociedade civil, com o propósito de mobilizar todos os brasileiros no enfrentamento da pandemia de covid 19, na prevenção contra o contágio e na colaboração solidária para o socorro das pessoas mais golpeadas pelo alastramento da doença.
Princípios orientadores do pacto são a defesa da vida, a cidadania ativa, a dignidade humana, a solidariedade e o diálogo maduro e corresponsável na busca conjunta de soluções para o enfrentamento da pandemia. O pacto destaca vários pontos: a necessidade da união de esforços e a superação dos discursos negacionistas e personalistas desorientadores, a preservação e a proteção da vida e da saúde de todos, a oferta de soluções sanitárias emergenciais e o fortalecimento do sistema público de saúde e a necessidade de direcionar esforços e recursos econômicos para o enfrentamento dos efeitos da pandemia. Apela-se à solidariedade social na sociedade civil para a promoção de iniciativas pontuais e locais de socorro às populações mais vulneráveis. E também não faltou o apelo para que a vida política e a econômica sejam orientadas decididamente para a superação da profunda desigualdade social persistente em nosso país.
O pacto foi firmado no início de abril e conserva toda a sua atualidade. Por isso, na celebração do Dia da Pátria a Igreja Católica em todo o Brasil, por meio das organizações ligadas à CNBB, às dioceses e outras instituições, promoveu uma divulgação ampla do pacto, visando a potencializar os seus efeitos em favor da população. As preocupações manifestadas no pacto foram confirmadas nos meses sucessivos à sua publicação. A pandemia já atingiu mais de 4 milhões de pessoas e as vidas perdidas para o novo coronavírus foram cerca de 130 mil em todo o Brasil.
Confirmou-se também a previsão de que as mais atingidas seriam as pessoas social e economicamente mais vulneráveis. A pandemia deixou mais visível a profunda desigualdade ainda existente em nosso país, que também foi confrontado com a importância social do sistema público de proteção à saúde e, ao mesmo tempo, com a evidente fragilidade e a insuficiência desse sistema. A crise sanitária, além disso, deixou ainda mais fragilizados os brasileiros que não estão suficientemente inseridos na vida econômica e, bem depressa, os subempregados somaram-se aos desempregados. A situação só não foi pior até agora porque o auxílio emergencial do governo aliviou temporariamente o sofrimento desses brasileiros.
Muitos apelos contidos no pacto encontraram eco no coração dos brasileiros. Apesar da escassez de clareza e liderança do governo federal no enfrentamento da pandemia, o povo em geral aprendeu a levar bastante a sério os cuidados com a saúde, para evitar o contágio. E foram imensos os esforços da sociedade civil, somando com o poder púbico, para socorrer as vítimas. Alguém conseguirá dizer quanto significou a dedicação incansável dos profissionais da saúde às vítimas da pandemia? Quem somará todas as ações solidárias promovidas em todo o País por inumeráveis organizações e pessoas físicas para socorrer os necessitados de ajuda concreta, até mesmo para se alimentarem ou suprirem as necessidades básicas da vida diária?
Atualmente, ao que tudo indica, começamos a respirar um pouco mais aliviados, diante da perspectiva de queda na transmissão do vírus e também de menor número de pessoas falecidas. E existe a fundada esperança da chegada de vacinas, que poderão cortar de vez o avanço da pandemia e reduzir o número de vítimas. Mas isso não será para breve, nem permite desconsiderar os riscos ainda existentes. Os cuidados e medidas preventivas precisam continuar. E a vacinação de toda a população necessitará de mais um esforço concentrado de todos.
Ao lado disso, a vitória sobre a covid-19 não significará ainda a superação da pobreza e da vulnerabilidade social, presentes em todo o Brasil, como ficou claro durante estes meses de pandemia. O esforço solidário precisa continuar. E seria hora de encarar seriamente, em âmbito de governo e de sociedade civil, as medidas necessárias para tornar o Brasil um país efetivamente mais justo e solidário em suas estruturas econômicas e sociais.
Vem a propósito um pensamento repetido várias vezes nestas últimas semanas pelo Papa Francisco: vencido o novo coronavírus, também é preciso enfrentar e vencer um outro vírus, ainda pior e mais virulento: o egoísmo e a indiferença diante do sofrimento do próximo. Seria um grande aprendizado deste tempo de crise e sofrimento!
CARDEAL-ARCEBISPO DE SÃO PAULO
Dom Odilo Pedro Scherer
Cardeal-Arcebispo Metropolitano de São Paulo
Artigo publicado em "O Estado de S. Paulo", no dia 12 de setembro de 2020
Por todo este esforço, gostaríamos de dirigir a nossa Comunidade uma palavra de reconhecimento e agradecimento.
Aos nossos discentes, alunas e alunos da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, PUC-SP, e do Centro Universitário Assunção, que se empenharam nos estudos por meios digitais, transformando suas casas em salas de aulas e laboratórios, que com seus professores cumpriram o programa pedagógico do semestre e, desta forma, venceram mais um semestre da sua formação acadêmica. A vocês queremos agradecer! Muitos não dispunham de instrumentos para as atividades remotas. Por isso, distribuímos mais de 200 computadores com pacotes de dados, para que todos estivessem conectados. Preocupados, também, com a segurança alimentar dos estudantes bolsistas, criamos uma "bolsa alimentar, com a distribuição mensal de 900 cestas básicas, por três meses. Queremos agradecer, também, as suas famílias, que lhes apoiaram psicologicamente e materialmente, para que vocês pudessem cumprir o semestre! Muitos de vocês, são "calouros", primeiro anistas. A vocês, que não tiveram ainda a oportunidade de "sentir" a efervescência, o calor da vida acadêmica, lembramos: vocês ainda têm muitos semestres pela frente! Paulo Freire nos ensinou que não é só o aluno que aprende com o professor, mas o professor também aprende com o aluno. Vocês nos ensinaram muito neste semestre! No segundo semestre, queremos todos vocês conosco! Todos!!!
Aos nossos docentes, professoras e professoras, as nossas funcionárias e funcionários técnico e administrativos, também o nosso agradecimento!
Foram muitos os desafios, muitas as adaptações, mas vocês venceram! Foi necessário reinventar o ensino de qualidade, por meio de propostas remotas diversas, síncronas e assíncronas, fazendo com que o vínculo efetivo com a sala de aula a extrapolasse! Tão logo passe esta pandemia, voltaremos a nos encontrar, olhos nos olhos e voltaremos a experimentar a interação com nossos alunos, traçando com eles os caminhos do Saber e da Vida. Nossos técnicos garantiram o funcionamento da Instituição, em toda a sua diversidade de ações e na complexidade da sua natureza. O tele trabalho nos manteve próximos, mesmo distantes!
As nossas Reitorias, souberam com maestria, reger esta orquestra do Saber!
Uma palavra também muito carinhosa de agradecimento a nossa equipe do Hospital Universitário da Faculdade de Ciências Médicas e da Saúde, o Santa Lucinda, em Sorocaba. Vocês estiveram na linha de frente da saúde!
Em cada paciente, em cada atendimento, médicos, enfermeiros, técnicos e o pessoal administrativo concretizaram o juramento de Hipócrates, fazendo o bem para todos os doentes, empregando todos os nossos recursos e o seu conhecimento em favor dos pacientes!
Estamos nos preparando e investindo nos nossos espaços para adaptá-los à nossa volta, no segundo semestre. Será uma volta gradual e segura! Vamos cumprir todas as determinações das autoridades sanitárias. Em breve nossas salas, nossos laboratórios estarão cheios novamente. Os campi tomados pelos estudantes. Voltarão as assembleias, os debates, os seminários, as bancas! Voltaremos a lutar, presencialmente, contra o racismo, contra todas as formas de discriminação e opressão, em favor da Democracia, o bem maior da nossa sociedade!
Ao terminar estes agradecimentos, gostaríamos de elevar nosso pensamento em prece ou homenagem, por todos aqueles que perderam suas vidas para esta pandemia. Queremos, também, nos solidarizar com seus familiares... a eles nosso abraço amoroso! Paulo escreveu: "Ainda que eu falasse a língua dos homens ou dos anjos, se não tivesse Amor, seria como o bronze que soa ou o címbalo que tine. Ainda que eu tivesse o dom da profecia, o conhecimento de todos os mistérios e de toda a ciência, ainda que tivesse toda a fé, se não tivesse o Amor eu nada seria. Ainda que distribuísse todos os meus bens aos famintos, ainda que entregasse meu corpo às chamas, se não tivesse o Amor, isso nada me adiantaria...O Amor é paciente, prestativo, não é invejoso, nem orgulhoso, não procura seu próprio interesse... O Amor tudo suporta, tudo crê e tudo espera!" (na primeira carta aos cristãos de Corinto, capítulo 13), Renato Russo, nosso poeta, acresceu a inspiração paulina: "Só o Amor conhece o que é a Verdade!"
Amor é Verdade! Binômio de boa Ciência!
Obrigado a todas!
Obrigado a todos!
Secretaria Executiva da Fundação São Paulo
30 de junho de 2020
Transcorreu em 18 de maio passado o centenário de nascimento do papa São João Paulo II. Na sua Polônia natal, em Roma e em muitos outros lugares do mundo, seu centenário foi marcado por comemorações para lembrar a sua vida, sua atuação e seu legado para a Igreja Católica e para a humanidade. De alguma forma, o "papa que veio de longe" se tornou próximo de todos os que o conheceram.
Na sua eleição, em 1978, poucos tinham ouvido falar do cardeal Karol Wojtila, de Cracóvia, na Polônia. Eu era então um jovem sacerdote e me recordo de que meu bispo, já falecido, comentou com satisfação que tinha uma lembrança da atuação do jovem bispo polonês Wojtila durante o Concílio Vaticano II, com o qual ele havia participado de um mesmo grupo de trabalho. Mais tarde vim a saber que esse jovem bispo polonês participara ativamente da elaboração da Constituição Pastoral Gaudium et Spes, um dos documentos mais marcantes daquele concílio.
Sua eleição para o pontificado trouxe ares de novidade e esperança para a Igreja. Depois de um longo período de papas de origem italiana, a eleição do papa polonês pôs novamente em evidência a universalidade da Igreja e a abertura de sua missão a todas as nações, todos os povos, línguas e culturas. Ainda mais: o novo papa vinha de um país que vivia a experiência do regime comunista soviético. Sua eleição não poderia ser insignificante para a política internacional, pois trazia um elemento novo e surpreendente, que fazia pensar logo em possíveis mudanças nas relações entre os blocos comunista e capitalista. E não se enganou quem pensou assim, pois a atuação de João Paulo II foi importante para as mudanças no mundo socialista e comunista, que não demoraram a se manifestar.
Para muitos, São João Paulo II foi um papa político e não se pode negar isso. De fato, cabe ao papa exercer esse papel no seu significado mais elevado de promoção do bem comum, da justiça e da paz. O papa polonês empenhou-se na promoção do diálogo com os governantes e responsáveis pelos organismos internacionais, clamou pela superação dos conflitos e pela promoção da paz justa, pelo respeito à dignidade da pessoa humana e aos seus direitos fundamentais. Empenhou-se no estabelecimento de uma ordem econômica e financeira internacional justa, que tivesse o homem como centro, conforme aparece nos seus documentos sociais e pronunciamentos diante de autoridades e organismos internacionais. Promoveu a solidariedade entre os povos e culturas, a superação da miséria e da fome, o respeito pelas culturas dos povos, o diálogo entre os cristãos e com as diversas religiões.
Tudo isso, certamente, tem um peso político relevante e o reconhecimento da autoridade moral do papa apareceu de maneira eloquente no seu funeral, em abril de 2005. Na Praça de São Pedro, no espaço reservado às autoridades e representações internacionais, estavam presentes, ou representados, chefes de Estado e de governo da maioria dos países. Lado a lado, viam-se governantes de países antes em guerra entre si e que alcançaram a paz graças à ação diplomática do papa falecido. Até chefes de países ainda em conflito sentaram-se próximos na cena do funeral, prestando reconhecimento e homenagem ao pontífice que muito contribuiu para a convivência pacífica da grande família humana.
O longo pontificado de João Paulo II, de quase 27 anos, foi especialmente significativo para a vida da Igreja e lhe deixou um legado imenso. Coube-lhe levar avante a reforma e a renovação da Igreja, já iniciada por Paulo VI, conforme decisões do Concílio Vaticano II.
E o fez com grande determinação e fruto, apesar da fase difícil que a Igreja atravessava. As reformas envolveram os mais diversos aspectos da vida e da missão da Igreja. Fez publicar o novo Código de Direito Canônico e o Catecismo da Igreja, consolidou a reforma litúrgica, deu novas diretrizes à formação do clero e dos religiosos, incentivou os leigos católicos a assumirem seu papel na Igreja e na sociedade. Incentivou os jovens e as famílias, promoveu uma nova ação missionária, valorizou a ação da Igreja nos meios de comunicação, promoveu o diálogo ecumênico com as outras igrejas e comunidades cristãs, valorizou o diálogo e a colaboração com as religiões não cristãs em prol da paz e da dignidade humana. Enfrentou as difíceis questões morais da atualidade, como o respeito à vida humana, as diversas formas de injustiça e violência, as ideologias promotoras da violência, a miséria desumana, o comércio sujo das drogas, a exploração vil das pessoas em função de lucro, o escândalo da fome e das desigualdades absurdas entre ricos e pobres na comunidade humana.
A História dará seu julgamento sobre a importância de João Paulo II para a Igreja e a humanidade. Desde logo, porém, podemos afirmar sem medo de errar que ele passou à História como um dos maiores pontífices que a Igreja teve em sua história quase bimilenar. Que ele, junto de Deus, continue a olhar pela Igreja e pela humanidade, que enfrentam novos e antigos desafios.
Dom Odilo Pedro Scherer
Cardeal-Arcebispo Metropolitano de São Paulo
Artigo publicado em "O Estado de S. Paulo", no dia 13 de junho de 2020
Há quase quatro meses, com a pandemia de covid-19, o mundo mergulhou numa crise sanitária sem precedentes há mais de um século, desde a "gripe espanhola". Mesmo as sociedades mais avançadas na ciência e na técnica estão penando para lidar com o minúsculo vírus. O número de contagiados e de óbitos cresce a cada dia, deixando muitos em pânico diante da difícil escolha entre a renúncia ao ritmo ordinário da vida e o risco de fazer parte da multidão de vítimas.
Os atingidos pela pandemia merecem todo o nosso respeito e solidariedade. E se até aqui fomos poupados pela minúscula e assustadora criaturinha e ainda gozamos de boa saúde, demos graças a Deus!
Sem diminuir o drama de tantos, minha reflexão é um convite à esperança, cujos sinais aparecem mesmo em meio a tanta angústia e tanto sofrimento.
Vejo médicos, enfermeiros e servidores nos hospitais que, com dedicação heroica, põem em risco a própria saúde para salvar a vida dos doentes. Mesmo assim, muitas vezes devem assistir, impotentes e sem mais recursos, à perda de vidas preciosas. Não menos admiração merece a legião de cuidadores anônimos dos enfermos nas casas e em locais de acolhida, mesmo improvisados, fazendo o possível e o impossível para confortar e dar ânimo a quem foi golpeado pela covid-19. Quantos "anjos bons" estão empenhados em pequenas iniciativas de amor às pessoas do grupo de risco, como os idosos, dispondo-se voluntariamente a assisti-los e prestar-lhes serviços necessários!
Quantos grupos pequenos e anônimos, ONGs, igrejas, organizações sociais e assistenciais, famílias e indivíduos movimentam um volume incalculável de recursos de todo tipo para aliviar o sofrimento de doentes e socorrer os desassistidos! Há também quem reduza e até perdoe o valor do aluguel a receber, para ajudar quem perdeu sua fonte de renda e não tem como pagar. Quantos outros renunciaram espontaneamente ao nível de seus ganhos para evitar a morte da empresa ou organização empregadora!
E não faltam profissionais e pessoas de boa vontade que se dispõem a confortar e dar assistência psicológica a quem soçobrou sob a carga insuportável. Padres e religiosos continuam a assistir os doentes em hospitais e nas casas, mesmo correndo o risco do contágio. E muitas pessoas saem da indiferença e começam a se importar com a angústia do próximo.
Vejo governantes de vários países, personalidades do mundo dos negócios, da finança e do espetáculo unindo esforços para apoiar, financiar e incentivar a pesquisa, a ciência e a técnica na busca de uma vacina e de medicamentos eficazes para vencer a pandemia. E há um movimento em curso para que os benefícios da pesquisa sejam estendidos igualmente a todos os povos. Intelectuais, artistas, personalidades do mundo da cultura e do espetáculo, de expressão internacional, manifestaram-se a favor dos povos indígenas e de sua proteção contra a doença e a miséria. Mais de 60 bispos católicos, que vivem e trabalham com as populações da Amazônia brasileira, fizeram um forte apelo às autoridades governamentais brasileiras para que os povos da Amazônia, há muito necessitados de maior atenção, recebam, finalmente, o socorro necessário diante das ameaças à sua sobrevivência nos espaços de sua cultura.
Há iniciativas em âmbito mundial para promover o perdão da dívida externa de países pobres, para que possam cuidar melhor da vida de suas populações. E não é mais tabu falar em revisão das orientações da economia mundial, para fomentar novos padrões de vida e convivência, com prioridade para as necessidades básicas da população e oportunidades de vida digna para todos, em lugar do incentivo à acumulação e ao consumo do supérfluo e da cultura do descarte.
O vírus nos obriga a reconhecer que somos todos parte da mesma família humana, frágeis e necessitados de ajuda e apoio recíprocos.
Até nas contas do governo brasileiro, sempre apertadas e minguadas para a saúde e a assistência social, como num passe de mágica deu para prover socorro aos pobres e aos trabalhadores desempregados ou subempregados! Inúmeras empresas e grupos econômicos uniram-se para promover iniciativas de solidariedade, proporcionando alimento e socorro a famílias e comunidades carentes, leitos, máscaras, respiradores mecânicos e toda sorte de equipamentos para hospitais, ampliando a capacidade das estruturas sanitárias para o cuidado dos doentes.
Quando vejo que tudo isso acontece, penso que, apesar da angústia desta pandemia, há brotos de esperança despontando por toda parte. Esse mundo ainda tem jeito, porque o coração humano, apesar de tudo, está vacinado contra o pior de todos os vírus: a insensibilidade e o individualismo egoísta. A pandemia está ocasionando a superação do tédio, fruto da falta de sentido na vida. Está ajudando a dar novo valor ao que há de mais humano no coração das pessoas: o amor sincero, a dedicação graciosa ao irmão frágil e caído. Esse é o bem mais precioso na vida e por ele vale a pena viver e lutar!
Dom Odilo Pedro Scherer
Cardeal-Arcebispo Metropolitano de São Paulo
Artigo publicado em "O Estado de S. Paulo", no dia 09 de maio de 2020
Nestes dias venho fazendo algumas reflexões, que desejo compartilhar com os leitores. A primeira delas é a constatação de que um simples vírus, aparentemente insignificante, pode causar tamanho transtorno e mudar em poucos dias o ritmo da vida privada e social, a economia das nações e até as relações políticas globais. Quem podia imaginar isso? Era possível imaginar Nova York e São Paulo vazias de gente e de carros por dias seguidos? Escolas e universidades sem estudantes em pleno ano letivo? Os sistemas de saúde à beira do colapso, até mesmo em países ricos e organizados?
O coronavírus acabou pondo em xeque as teorias econômicas que não têm por base a justiça e a solidariedade, as ideologias que, obcecadas pela ambição do poder e das vaidades por ele proporcionadas, promovem o ódio cego e a desagregação social.
Desmascarou as tendências culturais orientadas pelo individualismo e o egoísmo, obrigando a reconhecer que ninguém, nenhum grupo e nenhum povo consegue ser feliz sozinho, nem resolver seus problemas sem os outros.
Não uma bomba atômica, mas um simples vírus nos obriga a fazer as contas com nossos limites e a redescobrir que não somos deuses e que os delírios de onipotência são ilusões perigosas, capazes de causar desordens e desastres na convivência humana piores ainda que o coronavírus. Humildade e um sadio realismo são necessários, mais do que nunca.
Em poucos dias o trânsito nas metrópoles melhorou e os índices de poluição e de desperdício de alimentos baixaram drasticamente. As pessoas viram-se obrigadas a ficar mais atentas umas às outras. Os pais têm mais tempo para conviver com os filhos e as famílias conseguem cultivar hábitos saudáveis, quase impossíveis na loucura da vida "normal". O vírus fez redescobrir o valor do dinheiro, conseguido a duras penas para ser gasto no essencial. E levou muitos a se voltarem novamente para Deus, reconhecendo a própria fragilidade e insuficiência e que a vida nunca está assegurada, mesmo com as casas bem protegidas, as melhores contas bancárias, as mais destacadas posições sociais, os melhores hospitais e o plano de saúde mais caro do mercado. Os sonhos e promessas de segurança total contra os males da vida ficaram duramente abalados, não por um terremoto, mas por um vírus minúsculo, que nem mesmo se consegue enxergar!
Também as celebrações religiosas estão suspensas e as igrejas seguem vazias, justamente nas solenidades da Páscoa, momento central na liturgia da Igreja Católica, quando as pessoas costumam afluir em grande número. A Igreja Católica, como tantas outras expressões religiosas, participa do esforço geral para evitar o contágio do coronavírus e cuidar da saúde e da vida das pessoas.
Contudo, se não podemos sair de casa para frequentar reuniões e aglomerações de povo, tentamos cumprir nossa missão religiosa de modo diferente, sem deixar de realizar aquilo que nos é tão caro. Procuramos novas maneiras de estar próximos das pessoas, não abandonando doentes, pobres e aflitos.
A pandemia move à solidariedade e ao esforço comum para superar a crise, que não poupa ninguém. É hora de abandonar oportunismos de qualquer tipo e a tentação de tirar vantagens individuais da tragédia geral. É tempo de esquecer diferenças e interesses de cada parte, para somar esforços na busca do que é necessário e bom para todos, focando a atenção nos que mais necessitam ser protegidos. Bem observou o papa Francisco, peregrino solitário diante da basílica vaticana e da Praça de São Pedro deserta, no dia 27 de março passado: estamos todos juntos, navegando em mar agitado pela tempestade; está em jogo o nosso destino comum.
A atual crise sanitária passará, como outras no passado. Oxalá, porém, a vida não volte ao seu normal sem que tenhamos assimilado as lições deixadas pelo coronavírus. Tantas vezes as crises ajudam a perceber melhor a vantagem de somar esforços, em vez de dispersar energias; de ter metas básicas na vida comum, a serem postas acima dos interesses particulares; de abraçar e defender valores irrenunciáveis, como a dignidade e a vida das pessoas, a provimento das necessidades básicas do povo, como alimento, saúde, moradia, saneamento básico e oportunidades para ganhar o sustento de maneira digna.
Crises podem propiciar criatividade e inventividade e, com certeza, haverá muita novidade no mundo da ciência e da técnica voltada para a medicina e a saúde. Mas seria uma pena se esta crise não nos ajudasse a repensar também a convivência social, os costumes, a cultura e a arte de viver.
Nem tudo é comerciável, nem tudo pode ser decidido na base do lucro e da vantagem pessoal. Há valores que devem orientar a vida comum, aos quais não devemos renunciar para não expor nosso frágil barco a tempestades ameaçadoras. Que a angústia, o sofrimento e o preço da vida de tantas pessoas, em consequência da pandemia do coronavírus, nos recordem essas e outras importantes lições de vida.
Dom Odilo Pedro Scherer
Cardeal-Arcebispo Metropolitano de São Paulo
Artigo publicado em "O Estado de S. Paulo", no dia 11 de abril de 2020
Vivemos tempos marcados pela exacerbação ideológica, em que se confundem facilmente valores com posições ideológicas e partidárias. A polarização ideológica cria miopias e até cegueiras, que não deixam mais ver as coisas como elas são e tudo é passado pelo filtro da ideologia assumida. Toda realidade é, então, assimilada a partir do preconceito. E o enquadramento ideológico se sobrepõe à verdade.
Falar de direitos humanos, fraternidade, solidariedade e justiça social causa arrepios aos que tomam posição num dos polos. E logo aparece o rótulo: "É coisa de comunista". Assumir a defesa da vida humana, ser contra o aborto e professar valores morais e religiosos, isso é tachado pelo outro polo ideológico como "coisa da direita, de ultraconservadores".
Será que a realidade é tão simples assim, em que são possíveis e devem ser aceitas como verdadeiras apenas duas interpretações extremas e opostas entre si? Posições, ademais, sem base na própria realidade das coisas, mas fundadas em posições ideológicas ou partidárias previamente assumidas? Parece-me que isso seria o verdadeiro fundamentalismo, no qual a complexidade das coisas deveria necessariamente caber em duas caixinhas apertadas.
Os extremismos levam à cegueira ou, pelo menos, à miopia, à deturpação da realidade. Fundamentalismos são fechados e avessos ao diálogo, preferem a luta contra quem é diferente, pensa diversamente e tem escolhas partidárias ou convicções religiosas distintas das suas. Daí vem a polarização sectária, fonte de agressões e violências de todo tipo, até mesmo mediante o recurso à difamação, à calúnia e à violência física. As fake news e agressões contra pessoas pelas mídias sociais, geralmente de rosto encoberto ou com perfil falso, potencializam aquilo que em outros tempos eram fofocas de esquina ou calúnias a meia voz e se mantinha circunscrito a um ambiente restrito.
Interpreto esses fenômenos como sinais de uma profunda crise do pensamento filosófico, a permear a cultura do nosso tempo. O esvaziamento da filosofia do ser levou à desconfiança quanto à capacidade humana de conhecer a verdade e de afirmar algo que vá além do objetivável e verificável mediante métodos científicos. Faz bem a ciência em seguir avante com seu método próprio, rigorosamente aplicado. Mas nem tudo é passível de ser enquadrado nesse método. A verdade sobre o homem e seus anseios mais profundos, sobre os ditames da ética e da moral, o discurso sobre o mundo e Deus, enfim, a verdade propriamente filosófica, tudo foi atirado ao mundo das incertezas e da opinião subjetiva.
É verdade o que cada um diz ou sente. Cada um tem a sua verdade e, assim, acaba-se não tendo mais nenhuma verdade. Onde tudo é verdade, nada é verdade.
A verdade dos nossos tempos tornou-se líquida, vaporosa, nebulosa e inalcançável, deixando um vazio enorme e uma incerteza angustiante. Isso acaba abrindo espaços para discursos fundamentalistas, sustentados por gurus iluminados a prometer sua verdade segura e salvadora, geralmente embasada no antagonismo e no ódio. A ela se adere cegamente, sem admitir espaço para o contraditório, o diálogo e a acolhida de outras luzes para iluminar a compreensão das coisas e das pessoas.
Esse estado de espírito bipolar também torna enferma a cultura e a convivência social, favorecendo o surgimento de supostos salvadores da pátria, que pregam fundamentalismos sectários e requerem adesão irrestrita às suas ideias e posições extremadas, demonizando quem pensa diversamente, ou tem posições contrárias às suas. Tempos de grandes incertezas e de insegurança social, econômica e cultural, ao longo da História, foram ocasiões favoráveis para o surgimento de caudilhos oportunistas e regimes totalitários, que produziram enormes tragédias.
Isso tem solução? Certamente, existem soluções. A primeira coisa a fazer é a tomada de consciência dessa situação e fazer uma avaliação crítica sobre o que está acontecendo. A tentação a se deixar levar pela polarização fechada deve ser vencida pela abertura sincera e corajosa ao diálogo e à atitude da escuta. Ninguém precisa abdicar imediatamente das próprias convicções para aceitar as do outro. Trata-se de ouvir e de perceber as razões do outro, do qual podemos sempre aprender algo. Ninguém, a não ser Deus, é senhor absoluto da verdade. De maneira individual, nossa percepção da verdade é sempre parcial e podemos aprender algo de quem pensa diversamente de nós. Mesmo que devamos discordar inteiramente do outro, não estamos dispensados de tratá-lo com respeito e consideração, como nós mesmos gostaríamos de ser tratados por quem discorda de nós.
A atitude dialogante e o espírito desarmado também devem permear as relações sociais e políticas. Os extremismos raivosos e as manifestações de ódio envenenam e tornam sufocante o convívio social. No diálogo sereno, ao contrário, todos têm a ganhar. A vida social alicerçada no respeito às pessoas e no senso de colaboração e justiça faz bem a todos.
Dom Odilo Pedro Scherer
Cardeal-Arcebispo Metropolitano de São Paulo
Artigo publicado em "O Estado de S. Paulo", no dia 14 de março de 2020